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A primeira vinda de Cristo

15/12/2011

Diácono Juranir Rossati Machado

Assessor de Pedagogia da CND (ENAP).

Introdução

Diariamente, na Celebração Eucarística, dentro do Rito da Comunhão, após a oração do Pai-Nosso, firmados na esperança, confessamos que “aguardamos a vinda do Cristo Salvador”. É uma expressão de fé que revela que somos uma Igreja expectante, cuja esperança deita suas raízes naquelas palavras proferidas pelos “dois homens vestidos de branco”: “Homens da Galileia, por que ficais aí a olhar para o céu? Este Jesus que acaba de vos ser arrebatado, para o céu, voltará do mesmo modo que o vistes subir para o céu” (At 1, 10-11). O episódio do arrebatamento de Jesus ou de sua ascensão ao céu marca o ponto final de sua primeira vinda, mas não o ponto final de sua presença mística ou sacramental entre nós. Podemos falar, então, de uma tríplice vinda de Jesus, atentando para os diferentes aspectos teológicos que envolvem cada vinda. Falar de cada uma delas é entrar numa dimensão distinta da fé. Firmamo-nos na certeza do retorno definitivo porque houve a primeira; acreditamos que, entre a primeira e a última, existe a presença invisível de Jesus por causa de suas palavras, especialmente as que Mateus registra: “Porque onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí estou no meio deles” (18, 20). Enquanto a nossa crença na presença mística de Jesus e em seu retorno glorioso no final dos tempos é sustentada pelos dados exclusivos da fé, não acontece o mesmo em relação à primeira vinda, que exige um olhar histórico e um olhar teológico sobre a pessoa de Jesus. É a respeito da primeira vinda que desejo refletir! Sem ela não se pode falar de tempo de espera nem de sua vinda no final dos tempos!

Lançando um olhar teológico

Jesus não é mito. Não é fruto de uma engrenagem fantasiosa. É uma realidade histórica. Dele nos falam não somente fontes cristãs mas também fontes não cristãs.

São fontes cristãs os livros do Novo Testamento, dos quais “sobressaem, por importância, os Evangelhos, porque referem diretamente os ensinamentos de Jesus e informam sobre os fatos mais destacados de sua vida” Baseando-se somente nas cartas apostólicas, X. Leon-Dufour, em sua obra I Vangeli e la storia di Gesù , apresenta este interessante e sugestivo apanhado acerca de Jesus: “Jesus é da descendência de Abraão (Gl 3,16), da tribo de Judas (Hb 7,14) da família de Davi (Rm 1, 3). Nascido de uma mulher, viveu sob a lei judaica(Gl 4, 4; Rm 15, 8), teve ´irmãos´ (1 Cor 9, 5) um dos quais se chamava Tiago (Gl 1, 19). Os apóstolos, entre os quais se achavam Cefas (Pedro) e João (1 Cor 1, 12; 9, 5; Gl 1, 18; 2, 9.11) viram-no no tempo da ressurreição (1 Cor 15, 5). A transfiguração, único fato da vida pública de Cristo mencionado nestas cartas, teve lugar na montanha (2 Pd 1, 16-18). Na noite em que foi traído, Cristo instituiu o sacramento de seu sacrifício, durante um último banquete (1 Cor 11, 23-25). Antes de morrer sofreu uma terrível agonia do espírito (Hb 5, 7-9). Foi ultrajado no momento de sua paixão (Rm 15, 3) mas, injuriado, não revidou a injúria (1 Pd 2, 23). Sob Pôncio Pilatos (1 Tm 6, 13), no período da páscoa (1 Cor 5, 7), foi condenado à morte pelos judeus (1 Ts 2, 15), crucificado (Gl 3, 1; 1 Cor 2, 2), sobre uma cruz (1 Pd2, 24), fora da porta da cidade (Hb 13, 12). Foi sepultado (1 Cor 15, 4: Rm 6, 4), ressuscitou (1 Cor 15, 4), apareceu a numerosos irmãos (1 Cor 15, 5-8) e subiu ao céu (Ef 4, 10), donde voltará no fim dos tempos (1 Ts 1, 10; 4, 10; 4, 16).”

O que acabamos de ler são afirmações valiosas. Apresentam notícias fundamentais da vida de Cristo, contidas nos Evangelhos e Atos dos Apóstolos. São informações que nos levam a perceber uma breve biografia de Jesus. Uma ou outra informação será objeto de fontes não cristãs, como veremos daqui a pouco. Mesmo que o olhar predominante sobre as notícias apresentadas seja teológico, o historiador sincero não pode simplesmente dispensá-las, considerando-as frutos da fantasia ou um engenhoso estratagema a favor de uma mitologia.

Um olhar teológico sobre a figura de Jesus leva-nos a considerar, dentro da multiplicidade de situações, três episódios contidos nas páginas evangélicas : a reação do povo diante do agir de Jesus, a constatação de algo especial em sua pessoa por parte de Nicodemos e a experiência dos apóstolos após a sua ressurreição.O povo percebia que em Jesus havia uma postura que conduzia a multidão a perceber nele uma manifestação de Deus. É o que nós vemos, por exemplo no episódio da cura do paralítico que os evangelhos sinóticos nos apresentam (Mt 9, 1-8; Mc 2, 1-12; Lc 5, 17-26). Ele cura o paralítico e o liberta de seus pecados, fazendo-se igual a Deus neste ponto, fato que revoltou os escribas presentes. Nenhuma palavra de esclarecimento em sua boca, no sentido e evitar alguma mal entendido. Não há mal entendido a ser evitado. O que se ouve de seus lábios é uma revelação quanto à sua origem divina no ato de perdoar os pecados. Qual foi a reação do povo? Possivelmente, mesmo sem entender a profundidade das palavras de Jesus, o povo percebe que existe ali, naquela cena, uma assombrosa novidade. Segundo Mateus, o “povo encheu-se de medo e glorificou a Deus por ter dado tal poder aos homens”. Segundo Marcos, a “multidão inteira encheu-se de profunda admiração e puseram-se a louvar a Deus, dizendo: “Nunca vimos coisa semelhante”. Segundo Lucas, “Todos ficaram transportados de entusiasmo, glorificavam a Deus; e, tomados de temor, diziam: Hoje, vimos coisas maravilhosas”. É evidente que no relato da cura do paralítico existe um olhar teológico lançado pelos redatores dos textos. Esse olhar é fruto de quem estava vivendo a experiência da Ressurreição de Jesus. No episódio da cura do paralítico, a atitude de Jesus, levando o povo a glorificar a Deus, encontra-se a revelação de que ele é o Cristo enviado por Deus! “Rabi, sabemos que és um mestre vindo de Deus. Ninguém pode fazer esses milagres que fazes, se Deus não estiver com ele” (Jo 3, 2). Estas palavras não vêm de alguém do povo, sem projeção social e religiosa. Partem da boca de um “príncipe dos judeus”, isto é, de um membro do Sinédrio. Sinédrio era o Supremo Conselho Nacional e Religioso, sendo seu chefe o sumo sacerdote. Nicodemos, estudioso, observante e mestre da Lei ( Jo 7, 51), falou em seu próprio nome; mas a sua declaração tem muito peso. Declara estar convencido de que Jesus tinha uma missão divina. O diálogo com Nicodemos “vai permitir um progresso no ensinamento dos mistérios de Deus” , principalmente na linha do “novo nascimento” e da ação do Espírito Santo na vida do batizado. Não temos elementos para afirmarmos que Nicodemos se tornou discípulo de Jesus, mas sabemos, através do Evangelho de João, que ele reaparece em seu sepultamento (19, 39).

O Novo Testamento é consequência do Mistério da Ressurreição. Enfatizo: o Mistério da Ressurreição é a “anima” do Novo Testamento. A favor da ênfase, cito estas palavras de Paulo: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nosssa pregação, e também é vã a vossa fé” (1 Cor 15, 14). É a partir da ressurreição de Jesus, que os redatores de suas páginas lançam o olhar teológico sobre as palavras, gestos e obras de Jesus. Surgem em suas memórias aquelas ações reveladoras de sua missão messiânica (Mt 16, 16); do projeto da redenção da humanidade, apresentado ao homem após a sua ruptura com Deus, no Paraíso (Gn 3, 15); percebem que Jesus é Deus encarnado no meio de nós (Jo 20, 28) e que Maria, concebendo em seu ventre o Filho de Deus inaugura a plenitude dos tempos de que nos fala Paulo (Gl 4, 4-5). Não querem fazer História, mas testemunhar que Deus esteve, está e estará sempre entre nós. O Novo Testamento está em nossas mãos ou ao nosso alcance porque existiu, nos primeiros seguidores de Cristo, um ato de fé em sua pessoa, a certeza de que ele é Deus, que é o “Verbo que se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). Somos herdeiros da profissão de fé dos primeiros seguidores de Jesus Cristo e essa profissão é parte do fundamento de sua Igreja!

Nas fontes não cristãs

Não podemos esperar da História um olhar teológico sobre o acontecimento Jesus; mas, dentro da própria História, vamos encontrar as chamadas fontes não cristãs. Possivelmente, a mais importante delas seja Flávio Josefo (37-103), natural de Jerusalém, filho de Matias. Em sua obra Antiguidades Judaicas, escrita entre os anos 93 e 94, escreve sobre a história da nação judaica desde suas origens até a guerra contra Roma. Refere-se à morte de João Batista e ao martírio de Tiago. Nas páginas 63 e 64, apresenta o seguinte relato: “(...) existiu neste tempo Jesus, homem sábio, se podemos chamá-lo de homem, pois que executava coisas extraordinárias, mestre de homens que acolhiam com prazer a verdade. Atraiu a si muitos judeus e também muitos gregos. Era o Cristo. E havendo castigado Pilatos com a cruz, por denúncia de homens notáveis entre nós, nem por isto afastaram aqueles que desde o princípio o haviam amado. Ele lhes apareceu no terceiro dia novamente vivo, tendo já dito os divinos profetas esta e outras mil coisas admiráveis a respeito dele. Ainda hoje não se desfez a tribo daqueles que são chamados cristãos” (XVIII 3, 3). No espaço de tempo de 110 a 120 d.C., temos escritores romanos fazendo referências a Jesus e a seus seguidores. São eles: Tácito, Plínio, o Jovem, e Suetônio. O primeiro, apresentando uma notícia exata sobre o suplício e morte de Cristo, fala do incêndio de Roma no ano 64: “Um boato acabrunhador atribuia a Nero a ordem de pôr fogo na cidade. Então, para cortar o mal pela raiz, Nero imaginou culpados e entregou às torturas mais horríveis esses homens detestados pelas suas façanhas, que o povo apelidava de cristãos. Este nome vêm-lhes de Cristo, que, sob o reinado de Tibério, foi condenado ao suplício pelo procurador Pôncio Pilatos. Esta seita perniciosa, reprimida a princípio, expandiu-se de novo, não somente na Judéia, onde tinha sua origem, mas na própria cidade de Roma.” Em 112, Plínio, o Jovem, escreveu ao imperador romano Trajano a seguinte informação: “(...) os cristãos estavam habituados a se reunir em dia determinado, antes do nascer do sol e cantar um cântico a Cristo, que eles tinham como Deus.” No ano 120, Suetônio afirma, em suas anotações, que o imperador romano Cláudio (41-54) “expulsou de Roma os judeus, que, sob o impulso de Chrestós, se haviam tornado causa frequente de tumultos”.

Voltando à primeira vinda

Em sua primeira vinda, Jesus, o Cristo de Deus e de todas as nações e povos, realiza o projeto do Pai. Ele deseja que o homem restaure em si a imagem e semelhança de Deus com que foi criado. E a restauração chega através daquele que ele envia ao mundo na plenitude dos tempos. “Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que crer nele não pereça, mas tenha a vida eterna.” (Jo 3, 16)

Em sua humanidade, Cristo é o homem segundo o coração de Deus. Seguindo-o, acolhendo-o, imitando-o, enfim cristificando-nos, entramos no processo da reconstrução da imagem de Deus em nós. Isto significa processo de salvação ou redenção do homem. É nele que se encontra a renovação de nossa mentalidade e do próprio coração. A primeira vinda de Cristo, anunciada pelos profetas nas páginas do Antigo Testamento (Is 7, 14; 9, 5-6; Mq 5, 1), proclamada por João Batista (Mt 3, 1-12), tornada possível graças à disponibilidade de Maria, abraçando o Mistério da Encarnação (Lc 1, 26-38), precisa motivar continuamente a caminhada da Igreja e de cada um de seus membros em particular.

A vida cristã tem como um dos alicerces a peregrinação espiritual em todos os acontecimentos relacionados à primeira vinda de Cristo. É necessário que ela esteja sempre presente em nossa consciência, como um grande sinal de preparação para sentirmos a presença mística ou sacramental de Cristo na assembléia que se reúne em seu nome, em cada sacramento que a Igreja administra. A consciência da primeira vinda de Cristo pode levar-nos a contemplar a Eucaristia e dela participar dizendo firmemente que ele está entre nós. No cenário da primeira vinda, Cristo é pregado na Cruz, dando a demonstração suprema de sua doação ao projeto de Deus e de seu amor por todos os seus seguidores e não seguidores. Se não aprendermos a nos deixar crucificar com ele na cruz do dia a dia, não nos estaremos preparando para sua vinda definitiva no final dos tempos.

Desde a ascensão de Cristo ao céu até seu retorno definitivo, estamos no tempo da espera, o que nos faz Igreja expectante. Nosso olhar se lança para o passado, à primeira vinda de Cristo, para sabermos viver no hoje de cada dia, para impregnarmos a vida com a vida do Espírito de Deus. Vivendo o presente, em comunhão com a vontade divina, nosso olhar se lança para o futuro - um olhar escatológico – e deixa sair do peito o grito da esperança: “Vem, Senhor Jesus!” (Ap 22, 20)

  1. Por que crer em Jesus Cristo, de Desidério Piróvano (Volume II – O Recado, Editora Ltda – 1985, p. 10)
  2. Ed. Paoline, Milano, 1968, pp. 89-90
  3. Leitura do Evangelho Segundo João, A. Jaubert (Edições Paulinas)
  4. Anais, XV, 44
  5. Epistolas, IX 96
  6. Vita Claudii, XXV
  7. Forma grega equivalente a Christós (Cristo)

Data do artigo: 15/12/2011