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Espiritualidade mariana

24/12/2011

Diácono Juranir Rossati Machado

Assessor de Pedagogia da CND (ENAP).

Tendo como fontes a Sagrada Escritura, a venerável Tradição Eclesiástica e o Magistério da Igreja, a espiritualidade mariana não corre o risco de transformar-se numa espécie de culto idolátrico. Não se trata de uma simples devoção, embora possa confundir-se com ela ou ela mesma pode servir de fonte para o surgimento de práticas devocionais. Brota de uma fé interior, que encontra em Jesus Cristo seu fundamento. Está intimamente associada à pessoa de Jesus; portanto não existe autêntica espiritualidade mariana sem referência ao Salvador. Na verdade, ela nos conduz ao mistério da salvação e tem suas raízes neste mesmo mistério. Leva-nos a seguir os passos do Filho de Deus, também Filho de Maria. Incita-nos a ouvir dos lábios do Mestre a novidade que ele nos traz a respeito de Deus, do plano do Pai, que consiste em refazer em cada homem e em cada mulher a imagem de Deus desfigurada pelo pecado. A espiritualidade mariana nunca nos coloca fora do seguimento de Cristo, mas leva-nos a segui-lo e a abraçar a causa de Deus, tendo Maria como modelo. Maria é uma espécie de escola, dentro da qual aprendemos a ser servos. É mariana a espiritualidade que se inspira nas atitudes de Maria, em seu papel único na obra da redenção da humanidade.

Do ponto de vista cristão, espiritualidade “é a coincidência do espírito humano com o espírito divino”. Esta definição que o Dicionário de Espiritualidade (Edições Paulinas/Edições Paulistas) apresenta traz a idéia de que na espiritualidade ocorre a incidência de dois movimentos: a ação humana, promovida pelo desejo de busca, e a ação do Espírito Santo, movido pela eterna vontade de revelar Cristo (Jo.14, 26). No homem, a busca do sagrado e de sinais da presença de Deus; no Espírito Santo, o sopro divino conduzindo o homem no cultivo e na vivência da espiritualidade. Se não existe essa “coincidência” não existe dimensão espiritual, que, em última análise, não deixa de ser a busca de Deus por parte do homem e o amoroso desejo de Deus deixar encontrar-se na mediação que desperta no homem o sentido religioso de sua própria vida. Então, podemos dizer que a espiritualidade mariana é o resultado da convergência de dois olhares: o olhar do homem e o olhar do Espírito Santo.

Vivida a nível pessoal ou comunitariamente, na Liturgia da Igreja, por exemplo, a espiritualidade mariana não deixa de ser uma forma de culto a Maria, reconhecendo nela a presença de Deus. É bastante ilustrativo o episódio da visitação que Lucas coloca em seu evangelho (1, 39-56). Saudando-a, cheia do Espírito Santo, Isabel reconhece, em sua jovem parenta, não só sua singular dignidade entre todas as mulheres, mas também a sua maternidade divina. O clamor eufórico de Isabel chega aos nossos ouvidos e penetra em nosso coração: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. Donde me vem esta honra de vir a mim a mãe de meu Senhor.” Na cena da visitação, verdadeiro cenáculo de profissão de fé, dois olhares se incidem sobre Maria: o olhar de Isabel e olhar do Espírito Santo. É no Mistério da Encarnação que se encontra o gérmen da espiritualidade mariana. Ele, o Mistério da Encarnação, é a autenticação da dimensão espiritual voltada para Maria. Podemos comparar essa dimensão espiritual voltada para a grande serva do Senhor como uma árvore cuja semente é esse grandiosíssimo mistério, fonte de devoções marianas. Se lhe falta essa consciência, a árvore não cresce, não se desenvolve, não dá frutos. Por que Isabel se volta para Maria!? Porque, no ventre imaculado da Virgem, Deus está presente, assumindo a natureza humana. A espiritualidade mariana tem tudo a ver com Deus. É a mediação através da qual estabelecemos contato com os mistérios divinos. Isabel não se fixa em Maria após a saudação inicial. Faz a extraordinária passagem que a conduz de Maria para Deus. Por sua vez, Maria não se fixa na saudação de sua prima. Realiza também um grande movimento: da saudação recebida para o canto do Magnificat, onde nos fala do poder, da misericórdia e da santidade de Deus. Traz-nos o Deus fiel às promessas. Traz-nos o Deus que se coloca ao lado dos humildes e dos indigentes. Traz-nos o Deus que desconcertou e continua desconcertando os “corações dos soberbos”. Dentro do contexto da Igreja, não é sério qualquer movimento espiritual que não traga em suas linhas as marcas do canto de Maria, uma seta direcionada para Deus.

Em seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, São Luis Maria de Montefort, um pouco antes de apresentar as “sete espécies de falsos devotos e de falsas devoções a Maria”, faz-nos esta exortação: “(...) impõe-se agora, mais do que nunca, fazer uma boa escolha da verdadeira devoção a Maria, já que há cada vez mais falsas devoções a Nossa Senhora, e é fácil tomá-las como verdadeiras. O demônio, qual falso enganador, fino e experiente, já enganou e levou à condenação tantas almas, por meio duma falsa devoção a Nossa Senhora, que todos os dias se serve da sua experiência diabólica para perder muitas outras.”A que falsos devotos Montefort se refere? Como eles as caracterizam? Quais são os traços da personalidade de cada um deles? Não vamos entrar em detalhes sobre cada tipo de falso devoto a Maria. Na verdade, vamos apenas citá-los. São eles: 1) os devotos críticos; 2) os devotos escrupulosos; 3) os devotos exteriores; 4) os devotos presunçosos; 5) os devotos inconstantes; 6) os devotos hipócritas; 7) os devotos interesseiros. Aproveitando comentários de São Luis Maria de Montefort, dizemos sucintamente que entre esses tipos de falsos devotos encontram-se aqueles que “criticam quase todas as práticas de devoção que as almas simples tributam singela e santamente a esta boa Mãe, porque não condizem com sua fantasia”. Estão também aquelas “pessoas que temem desonrar o Filho honrando a Mãe, rebaixar um, elevando o outro”. Não faltam aqueles “que fazem consistir toda a devoção à Santíssima Virgem em práticas externas. Ficam-se apenas na exterioridade desta devoção, por lhes faltar espírito interior”. Vamos encontra entre os falsos devotos “aqueles que só recorrem à Santíssima Virgem para ganhar alguma causa, para evitar algum perigo, para obter cura de alguma doença, ou para qualquer outra necessidade”. As observações que estamos lendo neste parágrafo referem-se mais diretamente à multiplicidade de devoções a Maria, existentes na religiosidade popular, que sem dúvida alguma têm seu valor, mas não deixam de correr o risco de ficarem fora dos critérios da Igreja.

Seguindo ainda o pensamento e considerações contidos na obra já citada, a verdadeira devoção a Maria e igualmente a autêntica espiritualidade mariana têm de ser: interior, filial, santa, perseverante e desinteressada. A expressão visível deve ser a visibilidade da convicção interior, da fé que enche o coração. Deve animar nosso sentimento filial, brotado da certeza de que Maria, Mãe de Jesus, é nossa Mãe (Jo 19, 26-27). A espiritualidade tem compromisso com a santidade. Quando não nos transforma, impulsionando-nos rumo a uma vida santa e irreprensível diante de Deus e dos homens (Ef 1, 3-4), a sua prática precisa ser revista. É na dinâmica da perseverança que ela se desenvolve e é no despojamento de interesses pessoais que ela se firma. Na verdadeira espiritualidade mariana encontramos firme itinerário de formação da consciência cristã e também da vocação missionária. Maria é a primeira discípula de seu próprio Filho e a sua primeira missionária, como muito bem demonstra o episódio da visitação à sua prima Isabel (Lc 1, 39-46).

Vivida dentro da verdade, nenhuma espiritualidade cristã nos afasta do Cristo que as páginas da Sagrada Escritura nos apresentam. A espiritualidade mariana é espiritualidade cristã; portanto ela nos coloca em contato com as páginas inspiradas pelo Espírito Santo e, através dessas páginas, coloca-nos diante de Deus. Nelas vamos acompanhando a trajetória de Maria, associada a Cristo, na realização do projeto do Pai. Quando falamos em trajetória de Maria, incluímos a primeira referência que se faz dela em Gênesis 3, 15: “Porei ódio entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.” Nestas palavras, encontra-se a semente das promessas messiânicas, dentro das quais Maria está presente. Quando falamos em trajetória de Maria, lançamos um olhar escatológico para a Mulher revestida de sol de que nos fala João em seu Apocalipse, quando descreve a luta da Mulher contra o Dragão (Ap 12, 1-6). A espiritualidade mariana faz-nos debruçar sobre a Mulher da promessa da redenção do homem e de seu papel na reconstrução da humanidade e sobre a Mulher da vitória contra o “grande Dragão, a primitiva Serpente, chamado Demônio ou Satanás, o sedutor do mundo inteiro” (Ap 12, 9). Quando falamos em sua trajetória, deixamos vir à lembrança as profecias que o Antigo Testamento registra a seu respeito e a respeito do advento de Jesus Cristo na plenitude dos tempos (Is 7, 14; Oseias 11, 1; Gl 4, 4). Quando falamos em sua trajetória, queremos também aludir-nos aos episódios do Novo Testamento, nos quais ela tem significativa participação ou a ela fazem referência. Chamam-nos a atenção aqueles episódios que levaram S. Afonso de Ligório, em Glórias de Maria, à profunda reflexão sobre as suas sete dores: profecias de Simeão, por ocasião da apresentação de Jesus no templo (Lc 2, 22-40); fugida de Jesus para o Egito (Mt 2, 13-23); a perda de Jesus no templo (Lc 2, 41-52); encontro de Maria com Jesus caminhando para a morte (Mc 15, 40-41); a morte de Jesus na cruz (Jo 19, 25); a lançada e descida da cruz (Jo 19, 34.38-40); o sepultamento de Jesus (Jo 19, 41-42). Chamam-nos também a atenção outras narrativas evangélicas que apontam as virtudes de Maria e nos direcionam para o seu papel no projeto do Pai. Entre elas, sem dúvida alguma, sobressaem os episódios da anunciação do nascimento de Jesus e da visitação (Lc 1,26-56),que nos mostram a sua disponibilidade e a sua missionariedade; a bodas de Caná (Jo,2, 1-12) onde Maria se apresenta como a intercessora e nos conduz a Jesus com o pedido de ouvirmos sua palavra e seguirmos seus passos; finalmente, dentro do cenário da crucifixão, acompanhamos a entrega de Maria como Mãe ao discípulo amado (Jo 19, 26-27), que representa cada um de nós e representa a Igreja. De todos esses episódios bíblicos, podemos levantar um elenco de virtudes de Maria, mas tal levantamento não está dentro de nosso objetivo. Nesses episódios referidos aqui e em outros, encontramos a sustentação da espiritualidade mariana e, à luz da Tradição Eclesiástica e do Magistério da Igreja, encontramos a fundamentação explícita e implícita dos dogmas de Maria: a Maternidade Divina, a Imaculada Conceição, a Virgindade Perpétua e a sua Assunção ao Céu.

Maria acompanhou o crescimento da Igreja. É o que nos leva a pensar convictamente o registro de Atos dos Apóstolos: “Todos eles perseveraram unanimemente na oração, juntamente com as mulheres, entre elas, Maria, mãe de Jesus, e os irmãos dele” (At 1, 14). Embora não haja uma alusão clara e direta à presença de Maria, podemos supor que ela esteve presente à eleição de Matias (At 1, 15-17), presenciou a vinda do Espírito Santo sobre a Igreja das primeiras horas (At 2, 1-13), ouviu e guardou em seu silêncio a pregação de Pedro (At 2, 14-36), acompanhou com entusiasmo as primeiras conversões (At 2, 37-41). A espiritualidade mariana faz-nos acompanhar a Igreja em companhia de Maria, ou, melhor ainda, faz-nos ser Igreja, sentindo o pulsar do coração da Mãe da Igreja, Maria Santíssima. A espiritualidade mariana não nos isola de nada que diz respeito à Igreja. Pelo contrário, desperta-nos para realidades que envolvem a comunidade cristã e, não poucas vezes, são verdadeiros desafios à fé que professamos. A espiritualidade mariana nos coloca nas pegadas de Jesus Cristo, que Maria soube seguir! Seguindo-a, não nos afastamos do Filho de Deus e Filho de Maria; encontramos certamente o Cristo que Deus nos enviou através dela!

Data do artigo: 24/12/2011