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As Vestes Litúrgicas de Ratzinger

22/11/2019

uan Manuel de Prada

Escritor e articulista espanhol

Há algum tempo causou uma certa perplexidade divertida em âmbito jornalístico o fato que a revista estado-unidense Esquire, no seu relacionamento anual às personagens que encarnam a epítome da elegância, tenha indicado Bento XVI como o homem que melhor escolhe os seus acessórios de vestuário. Esta escolha, de uma frivolidade muito característica de uma época que é propensa a banalizar aquilo que não compreende, aconteceu num momento em que Bento XVI tinha suscitado uma atenção midiática sem precedentes ao retomar algumas vestes de radicada tradição papal como o camauro, um barrete invernal de veludo vermelho bordado de arminho, ou o 'saturno', um chapéu de orla larga que já tinha sido amplamente usado por alguns predecessores seus, como João XXIII.

Naqueles mesmos dias difundiu-se o boato que os sapatos de pele vermelha que o papa costuma calçar eram desenhados por Prada, a célebre marca milanesa. Naturalmente a atribuição era falsa; a banalidade contemporânea nem sequer se tinha apercebido que a cor vermelha contém um nítido significado martirial, assim como também não compreendeu que estas vozes eram incongruentes com o homem simples e sóbrio que, no dia da sua eleição ao papado, mostrou aos fiéis apinhados na Praça de São Pedro e a todo o mundo as mangas de um modesto pulôver preto. Contudo, como sempre acontece, aquelas banalidades inoportunas escondiam uma base de paradoxal verdade: de fato, por vezes, também a confusão e a estupidez, conseguem compreender - de modo fragmentário, confundido e desnaturado - realidades que verdadeiramente existem. E a verdade é que de fato em Bento XVI está presente uma profunda preocupação pelo vestuário, mas de natureza diferente.

Santo Irineu dizia, nos finais da sua existência, de mais não ter feito na vida do que deixar crescer e amadurecer quanto tinha sido semeado na sua alma de Policarpo, discípulo de São João. Num ponto memorável da sua breve autobiografia, Joseph Ratzinger revela-nos como aprendeu, desde criança, a viver a liturgia, graças à semente nele colocada pelos seus pais, que lhe ofereceram o 'Schott', isto é, o missal traduzido em alemão pelo monge beneditino Anselm Schott. O fragmento possui uma beleza germinal comparável à que está contida no episódio da 'madalena' na obra mais importante de Proust: 'Naturalmente, sendo criança não compreendia cada pormenor, mas o meu caminho com a liturgia era um processo de contínuo crescimento numa grande realidade que superava todas as individualidades e gerações, que se tornava motivo de admiração e de novas descobertas.'

Esta concepção da liturgia como patrimônio herdado da Tradição, enriquecido por contributos sucessivos que o fazem crescer de modo orgânico, contrasta com algumas visões contemporâneas que preconizam um saber atomizado, órfão de fundamentos e de vínculos firmes, facilmente adaptável à circunstância concreta; um saber, enfim, furiosamente 'original'- como se a tradição não fosse a forma suprema de originalidade, porque permite que nos vinculemos às 'origens' - que contaminou certas tendências litúrgicas, esvaziando o rito de sentido. A semente que os pais depuseram naquela criança teria sucessivamente dado frutos em obras como Deus e o Mundo, na qual Ratzinger se preocupará por mostrar o sentido da historicidade da liturgia como dom entregue por Cristo à Igreja, dom que cresce com ela e estimula 'redescobri-la como uma criatura vivente'. A esta criatura vivente teria dedicado Introdução ao Espírito da Liturgia, um livro no qual - em continuidade com o título clássico de Guardini - Ratzinger reivindica o conceito de Tradição, que não é estático, 'mas que nem sequer se pode diminuir numa mera criatividade arbitrária', aprofundando uma concepção da liturgia como participação no encontro de Cristo com o Pai, em comunhão com a Igreja universal.

Como o seu mestre Guardini, Ratzinger deseja que a liturgia se celebre 'de modo mais essencial'. E aqui 'essencialidade' não significa pobreza, pelo menos no sentido em que alguém quis antepor a dimensão social à celebração litúrgica (a quem Jesus responde claramente no trecho evangélico da unção de Betânia); 'essencialidade' significa 'exigência íntima', busca de uma pureza interior que de modo algum deve ser interpretada como purismo estático.

Na atenção pela liturgia devemos enquadrar a importância - visível para qualquer pessoa não completamente entontecida pela frivolidade - que Bento XVI atribui aos paramentos e, de modo particular, aos ornamentos litúrgicos. O sacerdote não escolhe tais ornamentos por hábito estético: fá-lo para se revestir de Cristo, aquela 'beleza tão antiga e tão nova' da qual nos falava Santo Agostinho. Este 'revestir-se de Cristo', conceito central da antropologia paulina, exige, um processo de transformação interior, uma renovação íntima do homem que lhe permita ser uma só coisa com Cristo, membro do seu corpo. Os ornamentos litúrgicos representam este 'revertir-se de Cristo'. O sacerdote transcende a sua identidade para se tornar outro; e os fiéis que participam na celebração recordam que o caminho inaugurado com o Batismo e alimentado com a Eucaristia nos conduz à casa celeste, onde seremos revestidos com novas vestes, alvejadas no sangue do Cordeiro. Assim os ornamentos litúrgicos são 'antecipação da veste nova, do corpo ressuscitado de Jesus Cristo'; antecipação e esperança da nossa própria ressurreição, etapa definitiva e morada permanente da existência humana.

Em conclusão, o papa não veste Prada, mas Cristo. E esta sua preocupação não se refere ao 'acessório', mas ao essencial. É este o significado dos ornamentos litúrgicos que Bento XVI se preocupa por cuidar, para tornar mais compreensível para os homens do nosso tempo a verdadeira realidade da liturgia.

Artigo publicado originalmente no jornal L'Osservatore Romano (edição semanal em português, n. 27, 5/7/08)