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Aula de abertura da Escola de Teologia - Diocese de Ilhéus (BA)

17/03/2020

Aula de abertura da Escola de Teologia - Diocese de Ilhéus (BA)

A campanha da Fraternidade 2020

Rodrigo Dias - Candiato ao Diaconasdo Permanente na Diocese de Ilhéus (BA)

Senhoras e senhores, boa noite! Eu poderia utilizar da eloqüência sistemática para agradecer o convite e a confiança a mim externada nesta aula inaugural do ano 2020. Atrevo-me a enveredar pelo caminho da poesia, pois a ela não cabe títulos acadêmicos ou protocolos e tratamentos formais, só a beleza das palavras em torno de uma vida marcada pelo amor ao próximo, aos pobres; como é nosso ícone da Campanha da Fraternidade Santa Dulce dos Pobres. Fraternidade e vida: dom e compromisso, é nosso tema, com o lema: Viu, sentiu compaixão e cuidou dele. (Lc 10, 33-34)

            O cardeal escritor e poeta português Dom Jose Tolentino de Mendonça diz: “A oração não se constrói de palavras mas de relação. Não são as palavras, o mais importante, mas a celebração de um encontro”.

            Neste dia, que é primeira sexta feira da quaresma, onde quase todas as comunidades católicas começam cedo a experiência da oração, da penitência e do encontro, nos encontramos aqui, em Ubaitaba, para uma nova etapa da vida, que transcenderá os estudos acadêmicos, a sistematização da teologia para uma relação do encontro com os irmãos e com os professores, e, sobretudo,  a partilha do conhecimento.

            Nossa diocese de Ilhéus que vive a iminência da abertura do ano vocacional, para celebrar o jubileu de ouro da ordenação presbiteral e de prata pela ordenação Episcopal do nosso bispo Dom Mauro, criou, em parceria com a Universidade Estadual da Bahia,  um novo modelo da Escola de Teologia para Leigos (ETEL). Esse sistema, mais próximo das paróquias e organizado em núcleos, para oportunizar não apenas o curso aqui em pauta, Teologia, mas também o encontro dos irmãos, a oração coletiva e o saber empirista, que cada um de nós temos. Seja da cidade ou da roça, todos temos um jeito de conhecer e rezar a Deus, como bem nos diz o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez: "O discurso sobre Deus vem depois do silêncio, da oração e do compromisso".

            O tema “vida” da Campanha da Fraternidade de 2020, pode ser considerado repetitivo, pois a vida já foi tema de campanha anteriores. Esse questionamento dá-se uma vez que, direta ou indiretamentamente, todos os temas falam da vida. Isso acontece porque a consequência do pecado é a morte (Rm 6,23). Então, se quizermos, portanto, enfrentar e vencer o pecado, precisamos assumir a defesa e promoção da vida em todas as suas instâncias. É por isso que esse tema da vida nunca saiu da campanha da fraternidade.

            Temos nesta Campanha da Fraternidade algumas novidades. Primeiro, a construção do texto base foi profundamente marcada pelas novas diretrizes da Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros ( CNBB ), traz a imagem da casa, como metáfora para uma igreja dos novos tempos, onde um dos pilares é a palavra de Deus. Por isso o lema da campanha, que sempre foi bíblico, passou a ter mais força e divulgação. Agora, é verdade que, para nós baianos, o ícone da samaritana dos tempos modernos fixou-se no coração de todos. Temos uma campanha mais bíblica, mais iluminada pela hermenêutica do cotidiano do que pela exegese científica.

            Todos nós, em algum momento da vida, já ouvimos, celebramos, cantamos e comentamos essa parábola. Este gênero é tão presente nas sagradas escrituras que temos 40 parábolas no conjunto dos livros sinóticos, 29 no evangelho de Lucas, sendo que 16 só estão  neste evangelho. Este gênero literário é um modo de ensinar marcado por cinco momentos: Atenta escuta, Reflexão, Inquietação, Discernimento e Tomada de atitude. A parábola do Samaritano é tão presente em nossas vidas que até introduzimos o adjetivo “Bom ”, quando o texto bíblico chama apenas de Samaritano. Cabe, desde já,  procurar fazer uma leitura desse texto; portanto, àqueles que resistem dizendo já o conheço, recomendo, leia novamente, pois o texto base começa com a leitura bíblica ( indo ou vindo do templo de Jerusalém). 

            Vivemos em um tempo de muita indiferença. Nosso jeito de viver está cada vez mais individualista.  Não temos mais um ambiente coletivo, seja na sociedade de modo geral, seja na compreensão política ou religiosa. Bastar olhar para o enfraquecimento das organizações de classe ou sindicatos, entre outros. Existe, também, uma teologia do sofá em evidência na atualidade, marcada pela força da prosperidade sem levar em conta o Reino de Deus, que perpassa pela justiça. O papa Francisco falou da globalização e da indiferença na ilha de Lampedoza, em julho de 2013. Pouco tempo depois, na exortação alegre do evangelho nos diz: “Para se apoiar um estilo de vida que exclui os outros, ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios. Já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe. A cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de perdermos a serenidade quando o mercado oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas essas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero espetáculo, que não nos incomoda de forma alguma”. EG 54

Queridos amigos, o texto base da cf 2020 escolheu como ícone dos tempos atuais a samaritana baiana Santa Dulce dos Pobres, importante dizer que a escolha aconteceu um pouco antes do anuncio da canonização (Zilda Arns, Ir. Doroty etc). Se olharmos o cartaz da cf 2020 a imagem da Santa Dulce no pelourinho fora da Igreja, veremos que traz em seu entorno mulheres, idosos, deficientes, negros, animais e plantas e um espaço para outros rostos não citados no texto base, sem dúvida lembrados pelo coração de Jesus.

            Existem pessoas que gostariam, talvez, de Dulcificar a nossa campanha, tirando os pobres da Santa. Insisto a Santa é Dulce dos Pobres. A nossa campanha da fraternidade quer provocar em todos nós um compromisso; por isso os verbos, Viu, sentiu, cuidou,  trata-se de  uma releitura bíblica do método ( ver, julgar e Agir).

No primeiro momento da campanha somos chamados a ‘ver’! Cabem algumas interrogações: Ver a quem?  E, como ver?

            Nesta época em que vivemos,  enxergar as pessoas se tornou muito difícil. Bastar observar no ponto de ônibus ou na espera de uma consulta medica, a tela do smartfone se tornou nosso jeito de falar  e perceber o mundo. O Papa, na Audiência geral da ultima quarta-feira de cinzas, disse: “ A Quaresma é um tempo propício para abrir espaço para a Palavra de Deus. É tempo para desligar a televisão e abrir a Bíblia. É tempo para se desligar do telefone celular e se conectar com Evangelho”.     Como é impressionante que as imagens de um acidente valem mais do que pessoa. A filósofa Hannah Arendt, que escreveu o livro Banalidade do mal, pontua que o responsável pelo transporte dos prisioneiros judeus para os campos de concentração, era alguém que não conseguia perceber a realidade, que não podia se colocar no lugar de outra pessoa. E seu problema não era a ignorância, mas sim ter internalizado que o que estava fazendo era o correto; ele seguia a lei sem questionar o certo ou errado, e, dessa forma, tornou-se um dos maiores criminosos de guerra. Como muitas vezes agimos assim: como o levita ou o sacerdote,  até percebemos os caídos, mas temos horários da missa, da ETEL.

            Precisamos romper o olhar que não nos compromete e descer do animal dos nossos carros, da nossa arrogância. Nosso olhar precisa ter a coragem de interromper o caminho e  a rotina; de aproximar e tocar. Somente um olhar interessado pelo destino do mundo e do ser humano permitirá experimentar a dor pela situação que rege a história, mas que é superada pelo amor. (DiretrizesGerais 2019 a 2023 n102)

            Amados, nosso olhar reflete o que temos por dentro. Pelo olhar construímos, e nele se manifestam os conceitos mais profundos sobre a vida e o viver. Somos chamados a ter uma atitude do samaritano, a ver a realidade brasileira e perceber que existe um olhar de abandono. A vida das pessoas, desde a econômica, como também aumento da violência seja ela virtual aqui Fake News (mentira) breves comentários sobre disseminação do ódio pelas redes socias. Como a física onde faço questão da leitura integral do numero 57 do texto base.

“  A incapacidade do Estado de frear a violência contribui para banalização do mal, na medida  em que grupos de extermínio determinam os que devem viver, os que devem morrer. Como se este fato já não fosse grave em si, ainda mais grave é quem nutre uma visão na qual o extermínio do outro soa como alivio.” Popular “bandido bom é o morto”.   

            Um olhar que destrói a natureza me fez recordar o livro do filósofo indígena Ailton Klena “Idéias para adiar o fim do mundo”, no qual o autor cita um encontro de uma doutora em antropologia e uma anciã indígena, que trata a  pedra como irmã. A pergunta inicial era: Quem é meu próximo? Jesus responde que o próximo é você mesmo, cada vez que te fazes próximo a uma pessoa que precisa de você. Ou seja, a pessoa que precisa de tua ajuda é aquela que te dá a possibilidade de amar e, assim, ser salvo, ganhar a vida eterna. O próximo não é o ferido à beira da estrada, do qual nada se diz na parábola, o próximo é o que teve compaixão dele, o que se fez próximo. Somente a atenção ao sofrimento das vítimas pode arrancar-nos do egoísmo e da indiferença, e mostrar que o amor não é feito de palavras, mas de gestos concretos (cf. Mt 25). “Eu tive fome e me deste de comer”, não “eu tive fome e fizeste uma oração”.

            Tudo começou quando o Samaritano aproximou-se para ver e compreender o que tinha acontecido. De acordo com Jesus, o importante na vida não é teorizar muito ou discutir longamente sobre o sentido da existência, mas andar como o samaritano: com os olhos abertos para ajudar qualquer pessoa que possa estar precisando de nós.”O amor ao próximo, no qual se encontra o segredo da vida eterna, impõe aproximar-se dos outros, particularmente dos que estão sofrendo e precisam de ajuda.

            A solidariedade de Jesus com todos os homens não era atitude vaga e abstrata em relação à humanidade. Amar todas as pessoas em geral, pode significar não amar pessoa alguma em particular. A solidariedade com os ´ninguéns´ deste mundo, com as ´pessoas descartadas´, é a única maneira concreta de viver na prática a solidariedade com a humanidade. A parábola do Samaritano nos confirma o que escreve Santo Agostinho no oficio das leituras: “O amor a Deus ocupa o primeiro lugar na ordem dos preceitos, mas o amor ao próximo ocupa o primeiro lugar na ordem da execução”.

            O segundo verbo é ‘sentiu’. A força está justamente na compaixão, não se trata apenas de um olhar de peninha, de dó, um olhar de compaixão gera um “permanecer com”, uma presença amorosa que cuida e transforma a vida. Somos chamados, sobretudo neste tempo de quaresma, a configurar nosso olhar ao olhar de Jesus de Nazaré que do alto do madeiro viu e perdoou todos os pecados e nos salvou por sua misericórdia. “Pai, perdoa-lhes, não sabem o que fazem”. Somos discípulos e amigos do ressuscitado. Estamos a serviço da vida. A páscoa nos ensina a romper os túmulos da indiferença e do ódio e ressurgir para o cuidado e a solidariedade com a vida. São Camilo, colocai mais coração nessas mãos! Hospital – contexto desta frase. Durante o carnaval recebi da universidade do Chile o novo prefácio do meu livro em espanhol.  Na obra, a professora relata uma crônica que conta uma experiência de quem coloca nas mãos o coração - história de dona Maria e a Marmita.

            No livro sobre a história de são Francisco de Assis, Tomás de Celano conta uma história de frades que estavam contemplando a beleza da natureza, perceberam um lugar no cantinho onde havia algumas plantas, como urtigas e cansanção, as quais Francisco cuidava. O centro do texto base está na compaixão, significa  ter mais justiça no coração. Nesta noite somos chamados a superar um dos grandes desafios para o nosso tempo, que consiste em definir o que se entende por justiça. Há poucos dias tive a oportunidade de participar de uma mesma mesa como conferencista com o juiz Helvécio de Argôllo,  titular da vara da família em Ilhéus e professor da UESC. Ele dizia, Rodrigo, depois que eu conheci o evangelho não consigo pecar tranquilamente.” Na oportunidade compartilhou um caso de justiça do coração – Mulher que teve a filha  única estuprada e morta – agora vou cuidar de você como se fosse meu filho. A compaixão é sentida nas vísceras, não é sentimento qualquer, é movido pela misericórdia de Deus. Todas as vezes que Jesus encontra um pecador, proclama: “Vai, de agora em diante, não peques mais”

            Sempre me pergunto se nós tivéssemos o poder de decidir, o que nos faríamos com Caim?   Levaremos para casa esta pergunta?

            Por fim, o verbo ‘cuidou’, a fé leva necessariamente à ação,  à fraternidade e à caridade. Aqui, cabe bem o que disse o Papa emérito “Fazei coisas belas, mas, tornai as vossas vidas lugares de beleza”.  A vida enquanto lugar da manifestação da beleza só é possível em um encontro verdadeiro. Por isso, amados irmãos, cuidar exige tempo, foi exatamente isso que o samaritano fez, doou seu tempo ao caído. Como poetiza bem o cardeal Tolentino “ Bem aventurados os que cultivam uma arte da lentidão”, passamos a  vida em um curto espaço de tempo, sem dias diferentes, controlados pelos ponteiros. Nossas agendas sempre cheias, já amanhecemos atrasados. Deveríamos perguntar, ‘quem deixamos de cuidar?’ com esta correria frenética da vida. Passamos pelas coisas e pessoas sem habitar, falamos com os outros sem ouví-los. Na verdade a velocidade que vivemos, impede-nos de viver. O Samaritano deu seu tempo, seu ombro e seu dinheiro para cuidar.

            Na Exegese moderna é muito comum deixar passar em branco a figura daquele a quem o Samaritano “confia", o ferido, quase como se fosse um detalhe pouco significativo. "O leitor distraído da parábola louva só o Samaritano e não presta atenção ao hospedeiro. Entretanto, o hospedeiro e a hospedaria, para a vida daquele pobre homem atacado pelos assaltantes, depois do Samaritano, são as figuras mais importantes. Há o dia do Samaritano, que termina, e há o dia seguinte, do hospedeiro e da hospedaria, que se estenderá até o retorno do Samaritano. Seria "banal" perguntar-se como o Samaritano teria feito se não conhecesse uma hospedaria na estrada, pronta a acolher o ferido? Como poderia permanecer perto dele sem contar com um lugar de apoio? Quem cuidaria daquele homem tão machucado? Para que serviriam os denários sem alguém disposto a assumir um compromisso "a longo prazo"?  ( quando eu voltar).

            Nossas Paróquias deveriam ser este ponto de apoio à casa do estrangeiro, como clamam os senhores e as senhoras. Que ao menos nesta quaresma nossas comunidades possam oferecer uma água potável aos moradores de rua de nossas cidades, como pequeno gesto de cuidado. 

 

            Termino citando o poeta Francis Thomson, que expressa com breves palavras tudo o que acabo de expor:

“Procurei a minha alma, não a pude ver.

Procurei Deus, Ele me escapou.

Procurei meu irmão e encontrei todos os três”

Rodrigo Dias