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A Serpente

22/11/2019

Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues

 

            Nelson Rodrigues tinha nostalgia de Deus e da inocência humana ferida pelo veneno da serpente. Não saímos de Deus retorcidos. Foi a serpente do paraíso que nos sugeriu - e continua a nos sugerir - uma conduta que nos desfigura.

 

Está sendo exibida em Sorocaba a peça teatral de Nelson Rodrigues, "A Serpente". Segundo o autor "a serpente é um símbolo paradisíaco. É um símbolo muito rico". E acrescenta: "a peça são fatos e visões da minha vida, completados por minha imaginação". O tema é o "pacto de morte e o suicídio" como clima e desfecho de um relacionamento "amoroso" tecido de ciúme, inveja, culpa, rejeição e solidão.        

O lado doentio do ser humano, normalmente escondido e negado, é exposto por alguém que procura vê-lo pela fresta da fechadura. Trata-se de uma tragédia em que os personagens pensam poder encontrar no furor da paixão sua própria identidade. Dissolver-se na paixão e morrer são experiências próximas. O ser humano aparece constitutivamente em desacordo consigo mesmo: "O homem nasce, evidentemente, contra vontade”. Como diz o homem da esquina, ninguém o consultou. É um impasse tremendo pelo fato de ter nascido. Por isso há suicídios natos, o suicida vocacional. O suicida não depende de fatos nem de motivos.     

“Depende desta nostalgia, desta vontade de retornar às suas raízes mais retorcidas", filosofa Nelson. Imagino: na esperança de endireitá-las. Ou será a busca da paz no nada? O triângulo amoroso duas irmãs casadas, representadas por dois varões vestidos de freiras, disputam numa brutal confusão de sentimentos o marido de uma delas, este vestido de padre. O que não corresponde à proposta original do autor. Não vi a peça exibida e nem pretendo vê-la. Não chego a compreender as razões por que o seu diretor envolveu pessoas, símbolos do sagrado, nessa representação. É verdade que o veneno da serpente atingiu toda a humanidade.     Verifica-se em nosso mundo uma crise ético-cultural em que para muitos tudo é a mesma coisa. Quando os símbolos do sagrado, objeto de respeito e de reverência, são transformados em vestes da miséria humana e se misturam, por propositada ironia, com cenas feitas de violência e pornografia, estamos realmente diante de uma forma de ver onde tudo é nivelado por baixo. De onde sopra em nosso tempo esse desejo suicida que expõe brutalmente a miséria humana e, ridicularizando valores sagrados, não abre nem mesmo uma fresta para a luz da esperança? Com meus quase 48 anos de sacerdote já ouvi muitas confissões. Não me foi necessário olhar o interior dos seres humanos, indiscretamente, pelo buraco da fechadura. Abriram suas almas diante de Deus a quem eu representava.

            Há histórias reais como essa tragédia teatral de Nelson Rodrigues. Há ainda pessoas que escancararam para nós seu interior e confessaram suas misérias. Leia, prezado(a) leitor(a), se você curte também filosofia, as Confissões de Agostinho, que, depois de uma vida tumultuada, morreu e nasceu de novo nas águas do santo Batismo. Se você é paulista, leia as confissões inacabadas do escritor poeta de Tatuí, Paulo Setúbal, onde ele expõe seus pecados e declara seu amor por Jesus Cristo, desfazendo as raízes retorcidas do próprio ser.

            Recomendo ainda a leitura das confissões de Gelfe, um homem simples, vítima de suas paixões e, que, por misericórdia de Deus se converteu na prisão, e que hoje, em Sorocaba, dirige uma casa de acolhimento para mulheres de rua que se dispõem a tentar um novo começo para suas vidas.

             Quanto a Nelson Rodrigues nutramos por ele um sentimento fraterno. Sua vida foi cheia de percalços: tuberculose, um casamento diante do padre, depois de ser batizado e de ter feito a primeira comunhão; a separação de Elza, sua esposa; mais três uniões que também se desfizeram; seu retorno à sua esposa, Elza, com quem viveu os últimos anos de sua vida e a quem pediu que inscrevesse na lápide de sua sepultura: "Unidos para além da vida e da morte. É só".

            Nelson Rodrigues tinha nostalgia de Deus e da inocência humana ferida pelo veneno da serpente. Não saímos de Deus retorcidos. Foi a serpente do paraíso que nos sugeriu - e continua a nos sugerir - uma conduta que nos desfigura. Não me consta que Nelson tenha ridicularizado a religião. Admirava São Francisco.   Acreditava em sua pureza. Veja o que ele disse sobre como deviam ser os ginecologistas: "Todo ginecologista devia ser casto. Aliás, devia andar de batina, com sandálias e coroinha na cabeça. Como um São Francisco de Assis, com luva de borracha e um passarinho em cada ombro." Não transforme, prezado (a) leitor(a) em verdades absolutas as afirmações de Nelson Rodrigues. Era seu jeito de lidar com a vida. Não conheci Elza, mas estou certo de que ela não gostava de apanhar, embora lhe tenha doído excessivamente a separação depois de alguns anos de casamento.

             Nem toda unanimidade é burra. Nelson sabia disso. Não. Há valores que pedem unanimidade e sua ausência é burra e pecaminosa. Oxalá houvesse unanimidade em relação aos valores fundamentais que devem presidir a vida em sociedade. Aconselho a leitura do livro do Gelfe: "Você NUNCA está só" (fone para encomenda: 30320120). Cristo Ressuscitou!

 

Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba - (domeduardo@arquidiocesesorocaba.org.br)