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APARECIDA: O LUGAR E A VIRGEM

22/11/2019

Símbolo e Utopia na Caminhada Popular

 

Maria Cecília Domezi

 

Tira as sandálias dos pés, pois o lugar onde pisas é sagrado (Ex 3,5).


Fonte: Pastoral Fé e Política

Arquidiocese de São Paulo

 

Aparecida é um lugar sagrado

 

Para a Igreja dos Pobres, como testemunha Jon Sobriño, reafirmar a Esperança supõe o reconhecimento de que Deus já havia passado por aqui bem antes da chegada da instituição Católica, e o Espírito de Deus já havia chegado muito antes dos missionários. Podemos acrescentar que o Cristianismo aqui implantado trouxe a Virgem-Mãe Maria, mas a religião popular que faz parte do mesmo Cristianismo, junto com as preciosas tradições dos nossos antepassados afro-ameríndios, a tem trazido de um modo mais convincente.

 

Aparecida do Norte é lugar onde Deus já estava. Neste chão religioso plural e profundamente enraizado, temos heranças religiosas com tradições de romarias e devoção popular, desde culturas primordiais de nossos antepassados ameríndios e africanos. Deus já estava em Teotihuacán, em Chavín de Huántar e em muitos lugares sagrados, como também caminhava com os grupos em suas romarias; Deus estava na cultura Diaguita, de quem os incas herdaram o culto à Pachamama; Deus sempre esteve na peregrinação guarani rumo à Terra Sem Males. A Deusa-Mãe Tonantzin estava nas ruínas do seu santuário, no Tepeyac, por onde passou o asteca Cuahutlatóac, que os missionários cristãos batizaram com o nome de Juan Diego. Nesse lugar sagrado, a face materna e o olhar de compaixão do “Deus do Perto e do Junto” revelou-se ao povo oprimido através da Virgem de Guadalupe que, inculturada na tradição da deusa-Mãe, pede uma casa de dignidade para todos os vencidos.

 

Aqui tem “muita religião, seu moço!”, como Guimarães Rosa faz seu personagem Riobaldo dizer. Historicamente, a religião dá sentido à resistência dos vencidos e também às suas lutas de libertação.

 

O lugar é a casa da Mãe. Ela é Maria de Nazaré, mulher pobre da “Galiléia dos gentios” (Mt 4,15), que é lugar de gente misturada, mestiçada, dada à religião sincrética, desprezada pelos ortodoxos judeus de Jerusalém. E quem conhece essa localidade insignificante, do interior da Palestina, chamada Nazaré? As Escrituras não a citam, o Talmud não a conhece e Flávio Josefo nunca dela ouviu falar. Como Nazaré, Aparecida é a casa dos pobres que encontram na religião o sentido para a vida e a luta.

 

Mas, o lugar é também a própria Mãe, Maria, mostrada no ponto alto do relato lucano da Anunciação, num paralelo com a memória da nuvem misteriosa do Êxodo: “O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com sua sombra” (Lc 1,35). A nuvem ensombreava a tenda da reunião, casa comunitária do povo que se liberta. E a casa da comunidade se transformava em morada de Deus (Ex 40, 34; Nm 10,34). O Espírito cobre a virgem e ela se torna fecunda do Filho de Deus. Por isso, ela é a nova shekinah, casa de Deus, tabernáculo do encontro da humanidade com seu Deus. Em Guadalupe, em Aparecida e em múltiplos lugares sagrados, neste continente Maria é a mesma nova shekinah, aberta e acolhedora, a serviço da cura integral de multidões de pessoas, padecentes dos males da injustiça social.

 

As águas do rio Paraíba do Sul, nas proximidades do Porto de Itaguassu, tornaram-se “encantadas” em 1717. Ofendem-nas hoje a poluição, causada inclusive pela própria basílica. Mas, são águas que fluem a memória e a presença da hierofania da imagem quebrada, que três pescadores acharam no fundo do rio. A narrativa popular diz que a “aparição” da imagem foi seguida de uma pesca milagrosa. Guardado com veneração o corpo sem cabeça, imediatamente a cabeça foi achada “mais abaixo”, e o pescador João Alves, na canoa, guardou num pano essa imagem machucada. Após quinze anos de culto familiar, na casa do pescador Filipe Pedroso, a Tenda da presença de Deus na solidariedade fraterna dos pobres estabeleceu-se sobre um altar de paus, numa capelinha de beira de estrada, na Vila de Guaratinguetá. A devoção do povo tinha grande irradiação.

 

O mesmo Espírito que cobriu Maria com sua sombra dinamiza a devoção popular de construir capelas e santuários. Foram os escravos do capitão Raposo Leme, com a ajuda de pessoas da vizinhança, que construíram a igreja velha, no Morro dos Coqueiros, em 1745. O santuário é morada da imagem milagrosa, através da qual se tem intimidade com a Mãe que, por sua vez, é morada do Salvador. A imagem reciclada e bricolada pelos pobres, nos malabarismos de sua riqueza cultural, é signo que se abre e se entrega a contínuos ajustes e acréscimos de sentido.

 

Guaratinguetá, no Vale do Paraíba, desde o início do século XVIII é lugar de gente pobre, escravizada, explorada e profundamente devota em sua fé cristã. No ciclo da mineração constituiu-se como um entreposto de mercadorias e de escravos, um lugar de passagem de tropas, comerciantes e multidões de migrantes, gente de todas as classes sociais, na avalanche da febre do ouro que trazia gravíssimos problemas sociais e constante repressão policial. O século XIX foi o do ciclo do açúcar, que consumia os escravos nos canaviais. A sobrevivência através da pesca era a tentativa dos pobres, submetidos a dura recessão.

 

Maria “apareceu” nesse lugar, num ambiente de forte tensão social, achada por pescadores explorados. Assumiu a cor da etnia mais discriminada e excluída. Seu culto nasceu, propagou-se e se mantém através da fé ativa de pessoas leigas empobrecidas, humildes e anônimas. E o primeiro favorecido por um milagre dela foi um escravo fugitivo e recapturado que, ao invocá-la, viu se quebrarem as pesadas correntes que o prendiam pelo pescoço.

 

A imagem-signo é emprestada da Senhora da Conceição, que, dentro do catolicismo hegemônico, era símbolo do poder colonial. Maria de Nazaré, a cheia de graça, torna-se presente e atuante através de uma imagem da Conceição, enegrecida e frágil, pequena e com cicatrizes, mas que já trazia, desde a arte do seu escultor, traços transgressores em relação à oficialidade: com covinha no queixo e sorriso nos lábios, penteado longo e solto, flores nos cabelos e na testa, porte levemente empinado para trás, numa identificação com as mulheres brasileiras pobres. O símbolo da resistência se compõe e recompõe, por bricolagem, nessa imagem híbrida, que faz parte do mundo das pessoas escravizadas e reduzidas à servidão, e que permite a circulação de elementos simbólicos, entre os oficiais e os da tradição popular.

 

O lugar da imagem oficial deveria ser um centro simbólico da cristandade brasileira. A imagem da Senhora da Conceição foi utilizada para dar coesão interna à identidade da nação. Mas, o povo brasileiro surgiu e cresceu de uma maneira constrangida e deformada, debaixo de extrema violência, escravização e extermínio. A hierarquia desta sociedade foi constituída sobre frágeis fundamentos, por regras frouxas e noções de dupla significação, de maneira que a ambiguidade tornou-se marca típica da cultura e do catolicismo popular brasileiros. O santuário de Aparecida, que põe em movimento multidões de romeiros do centro-sul do país, é mais um dos diversos santuários marianos, numa realidade policêntrica de catolicismo devocional. No imaginário do povo devoto, a basílica de Aparecida não é, exatamente, o centro nacional da catolicidade. E o universo simbólico e o complexo calendário de festas das classes populares desencontram-se do controle político-econômico e também do controle da Igreja.

 

O controle se estabeleceu desde cedo. O santuário do Morro dos Coqueiros, com o culto e os cofres, foi tomado pela Confraria de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, constituída pelos ricos da região. Depois, veio a intervenção da coroa portuguesa, que se valia do padroado régio. Dom Pedro I reafirmou a Senhora da Conceição como padroeira do império brasileiro, tolerando como apêndice o título de Aparecida. Mas, sua cor negra foi alvo de intolerância. Em 1854, o bispo da diocese de São Paulo, Dom Antônio Joaquim de Melo, tentou branqueá-la, mandando que se queimassem as estampas em que ela era representada negra e apresentando para a difusão uma estampa da Aparecida na cor branca, que mandara imprimir na Franca. E o episcopado brasileiro, após longa ausência nas romarias do povo, e sem ter visto em Nossa Senhora Aparecida o significado de libertação dos escravos, quando se estabeleceu a República empenhou-se na utilização desta devoção popular em sua campanha de restauração católica, numa militância anti-secularista e anti-positivista.

 

Sob o controle da hierarquia, a igreja velha foi ampliada, declarada santuário episcopal em 1893 e confiada aos missionários redentoristas alemães. A imagem foi solenemente coroada em 1904. em 1908, o santuário recebeu da Santa Sé o título de basílica menor.

 

Na década de 1930, o episcopado brasileiro conseguiu reunir grandes massas de fiéis e ostentar, diante do governo secular, o poder da nação católica. Dom Sebastião Leme proclamou, a 31 de maio de 1931, o título de Rainha e Padroeira do Brasil, que, no ano anterior, o papa Pio XI havia concedido à imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Junto a um milhão de fiéis e perante as autoridades civis e militares, a Igreja mostrou sua competição com o populismo de Getúlio Vargas. Em 1980 inaugurou-se a basílica nova, ocasião em que a imagem milagrosa recebeu, da Santa Sé, a rosa de ouro. O governo secular, por sua vez, deu-lhe um feriado nacional.

 

Entretanto, a santa do não-lugar, protetora dos sem-lugar, escapa ao controle e subverte as fronteiras estabelecidas. Ela se deixa bricolar, no seu significado, por pessoas despossuídas e dadas aos sincretismos. Ela se enegrece. Através dela, a adesão de coração ao evangelho, impossibilitada pela opressão colonizadora, se faz por um outro registro. Ela legitima, por um desvio, o processo sócio-cultural-religioso dos pobres.

 

Em seu cântico de libertação, o Magnificat (Lc 1, 46-55), Maria revela o que há de mais profundo da espiritualidade vivida, no povo da Primeira Aliança, pelos anawin, pelos profetas e pelos cantores da libertação dos pobres. É consciente, inteira e jubilosamente como servidora, que ela se coloca, junto com seu Filho, na ação de Deus que subverte a lógica da opressão e da exploração. É a primeira discípula, mulher de fé a toda prova. Nas Bodas de Caná (Jo 2,1-12), ela abre a ação subversiva do seu Filho e se adianta a Ele. Ele faz as talhas destinadas às abluções ficarem transbordantes do melhor vinho: da escravidão da lei vai para a vida abundante para todos e todas; da coerção vai à verdadeira liberdade, do dogma ao ser humano, da repressão à festa.

 

Na América Latina e Caribe, crescentemente os conceitos do catolicismo libertador se assentam no simbolismo tradicional da Mãe dos pobres, sempre presente e protetora. Maria é também companheira de caminhada, lutadora corajosa, junto com outras Marias do povo. Especialmente através das comunidades eclesiais de base, das minorias proféticas, grupos e movimentos de pessoas que vivem sua fé cristã empenhados na transformação da sociedade, Ela vem sendo reconhecida numa afirmação sócio-religiosa de identidade dos negros, índios e mestiços. A conscientização se faz mantendo vivo o sentido religioso e ressignificando elementos da religião popular.

 

No santuário de Aparecida, é preciso escutar a voz de Maria que canta a ação do Deus libertador dos pobres. Como discípulas e discípulos do seu Filho, temos que reafirmar e atualizar a opção pelos pobres, buscando dar respostas concretas e eficazes para os problemas de injustiça que persistem nas relações sociais de classe, gênero, raça/etnia, geração, cultura. Temos que abraçar a inculturação da boa nova, inclusive no diálogo aberto e solidário com as inusitadas recomposições do imaginário do povo.

 

Com os pés despidos para sentir o chão por onde vão pés dos romeiros, poderemos participar do Cântico de Maria, nele inserindo as maravilhas que Deus Pai e Mãe tem operado entre os povos da América Latina e Caribe.

 

O trecho completo pode ser lido acessando o site:

http://www.paroquiadivino.org.br/Ciclos_de_Estudos/Aparecida%20_O_lugar_e_a_virgem.htm