O Sétimo Pedido
01/05/2009
Diácono Juranir Rossatti Machado
DELIMITAÇÃO
O assunto é vastíssimo dentro do conjunto doutrinário da Igreja. Pode levar-nos a uma quase infindável linha de pensamentos, onde cada um deles é merecedor de cuidadosa atenção.
Por alguns instantes, vamos deter-nos no sétimo pedido da oração do Pai Nosso, segundo a redação do Evangelho de Mateus, fazendo uso da tradução apresentada pela Bíblia de Jerusalém: "mas livrai-nos do Maligno" (6,13b). Traz-nos a mesma tradução a Bíblia Sagrada traduzida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Em torno do sétimo pedido, impossível de ser compreendido plenamente sem as petições anteriores, queremos relembrar de modo sucinto alguns pontos que a Igreja nos apresenta através de seu Catecismo e de outras fontes, como, por exemplo, a própria alocução do Papa Paulo VI, pronunciada no dia 15 de novembro de 1972, durante a Audiência Pública.
Na verdade, em nossa breve exposição dos comentários colhidos nas fontes consultadas, não desejamos viver um simples ato de relembrança, sem nenhum comprometimento. Move-nos o objetivo de denunciar o excesso de eufemismos acerca da existência e do influxo do "mysterium eniquitatis", como se ele fosse mera expressão figurada exigida por algum gênero literário ou pelo imaginário popular. Em nossos púlpitos e celebrações litúrgicas, pouco se fala dele; estão tornando-se muito raras as ocasiões em que se faz a vinculação entre ele e a pascoalização de nossa vida por meio do Mistério da Salvação; em nossos lares, referimo-nos a lares cristãos, é grande o desconhecimento da influência maligna. Em nossa leitura, o silêncio e o desconhecimento que mencionamos não são sintomas de opção pelo projeto de Deus.
BUSCANDO CONCEITOS
Quem é o Maligno de que nos fala o sétimo pedido? Quem está por trás do Mal? Estas perguntas são capitais e têm muito a ver com o próprio entendimento da libertação de que Jesus Cristo é portador. A destruição das obras do Mistério da Iniqüidade é vista pelo evangelista João como sinal da manifestação do Filho de Deus (1Jo 3,8).
Comentando o sétimo pedido da oração do Pai Nosso, o Catecismo da Igreja Católica nos esclarece: "Neste pedido, o Mal não é uma abstração, mas designa uma pessoa, Satanás, o Maligno, o anjo que se opõe a Deus. O "diabo" ("dia-bolos") é aquele que se "atravessa no meio" do plano de Deus e de sua "obra de salvação" realizada em Cristo" (2851). Mais adiante, no parágrafo 2854, em seus comentários sobre a influência demoníaca, o Catecismo nos assegura: "Ao pedir que nos livre do Maligno, pedimos igualmente que liberte de todos os males, presentes, passados e futuros, dos quais ele é autor e instigador."
Ao rezarmos o Pai Nosso, trazemos conosco a humanidade com toda sua miséria e perturbações. Ninguém reza o Pai Nosso somente em seu nome; mas em nome de todos os homens e todas as mulheres. Os males não atingem exclusivamente a nós, mas a milhares e milhares de pessoas que estão ao nosso redor ou fora de nosso campo de visão e de nossos relacionamentos imediatos. Rezada de modo autêntico, dentro do Espírito de Cristo, a oração que ele nos ensina nos coloca dentro dessa universalidade. É isso que a Igreja nos esclarece, no texto do parágrafo 2854 de seu Catecismo: "Neste último pedido a Igreja traz toda a miséria do mundo diante do Pai. Com a libertação dos males que oprimem a humanidade ela implora o dom precioso da paz e a graça de esperar perseverantemente o retorno de Cristo." No mesmo texto, a Igreja arremata: "Rezando dessa forma, ela antecipa, na humildade da fé, a recapitulação de todos e de tudo naquele que "detém as chaves da Morte e do Hades" (Ap 1,18), "o Todo-poderoso, Aquele que é, Aquele que era e Aquele que vem" (Ap 1,8)."
NOS ENSINAMENTOS DO PAPA PAULO VI
Anteriormente à publicação do atual Catecismo, o Magistério da Igreja, através do Papa Paulo VI, seguindo o próprio Concílio Vaticano II, nos previne acerca da influência satânica na civilização dos homens. O Pontífice fala-nos sobre o assunto em sua famosa alocução pronunciada no dia 15 de novembro de 1972, na Audiência Pública. Em seu pronunciamento, motivo de grande polêmica na época, ele frisa: "Sai do âmbito dos ensinamentos bíblicos e eclesiásticos quem se recusa a reconhecer a existência desta realidade; ou melhor quem faz dela um princípio em si mesmo, como se não tivesse, como todas as criaturas, origem em Deus, ou a explica como uma pseudo-realidade, como uma personificação conceitual e fantástica das causas desconhecidas das nossas desgraças."
A realidade a que o Papa Paulo VI se refere em sua locução é o reconhecimento da existência do demônio e de sua ação sinistra no mundo e na vida de cada homem e de cada mulher. Para ele, o reconhecimento da existência do Maligno e a luta contra sua influência estão entre as maiores necessidades da Igreja. Em seu discurso profético, ele nos questiona: "Atualmente, quais são as maiores necessidades da Igreja?". Passados vários anos, a pergunta e a resposta não têm sua importância diminuída. Precisamos voltar constantemente elas. Logo a seguir, após a pergunta, o Pontífice nos coloca diante da resposta magisterial: "Não deveis considerar a nossa resposta simplista, ou até supersticiosa e irreal: uma das maiores necessidades é a defesa daquele mal, a que denominamos demônio". Paulo VI insiste que, em sua fala, não estava empregando uma linguagem metafórica. Objetivamente, referia-se a uma realidade espiritual.
Ainda dentro da mesma mensagem, deixemos que o próprio Papa nos fale da "importância que adquire a advertência do mal, para a nossa justa concepção cristã do mundo, da vida, da salvação". Ouçamo-lo, trazendo para os nossos dias a atualização de sua voz. Colocamos entre parênteses as referências bíblicas e de outras fontes que sustentam as considerações do Pontífice. Agora, ouçamo-lo: "É o próprio Cristo quem nos faz sentir esta importância. Primeiro, no desenvolvimento da história evangélica, no princípio da sua vida pública: haverá quem não recorde a página, tão densa de significado, da tríplice tentação? E ainda, em muitos episódios evangélicos, nos quais o demônio se encontra com o Senhor e aparece nos seus ensinamentos (cf. Mt 12,43). E como não haveríamos de recordar que Jesus Cristo, referindo-se três vezes ao demônio, como seu adversário, o qualifica como "príncipe deste mundo"? (cf. Jo 12,31; 14,30) E a ameaça desta nociva presença é indicada em muitas passagens do Novo Testamento. São Paulo chama-lhe "deus deste mundo" (cf. 2Cor 4,4) e previne-nos contra as lutas ocultas, que nós, cristãos, devemos travar não só com o demônio, mas com a sua tremenda pluralidade: "Revesti-vos da armadura de Deus para que possais resistir às ciladas do demônio. Porque nós não temos que lutar (só) contra a carne e o sangue, mas contra os Principados e Potestades, contra os Dominadores deste mundo tenebroso, contra os espíritos malignos espalhados nos ares" (cf. Ef 6,11-12). Continuemos ouvindo o Papa e não nos cansemos: "Diversas passagens do Evangelho dizem-nos que não se trata de um só demônio, mas de muitos (cf. Lc 11,21; Mc 5,9), um dos quais é o principal: Satanás, que significa o adversário, o inimigo; e, ao lado dele, estão muitos outros, todos criaturas de Deus mas decaídos, porque eram rebeldes e tinham sido castigados (cf. DS 800); constituem um mundo misterioso, transformado por um drama muito infeliz, do qual conhecemos pouco."
NA MESMA LINHA DE PENSAMENTOS
Alguns anos atrás, como nos lembra Pe. George W. Kosicki, C.S.B., em seu livro GUERRA ESPIRITUAL - ATAQUE CONTRA A MULHER, no apêndice D, o Cardeal Ratzinger, nosso Papa Bento XVI, concedeu uma entrevista "de grande profundidade" a Vittorio Messon, "acerca da situação da Igreja, que acabou resultando no livro: "O relatório do Cardeal Ratzinger", avidamente procurado.
Em sua entrevista, no capítulo 10 do citado livro, o Cardeal Ratzinger foi questionado a respeito de Satanás. Recorda-nos o Pe. Kosicki, fazendo alusão às palavras do entrevistado, que "não é surpreendente constatar que, a maioria de seus pensamentos coincidem com o Papa Paulo VI, e também com os do Papa João Paulo II". Traz-nos no apêndice mencionado e que nos serve de consulta neste momento palavras muito significativas a respeito do Mistério da Iniqüidade, que nos remete sempre ao sétimo pedido do Pai Nosso.
Cremos que a transcrição de algumas palavras do Cardeal Ratzinger sejam oportunas para a nossa reflexão. No relatório que recebe seu nome, ele reafirma a doutrina da Igreja: "Independentemente do que os teólogos sem discernimento possam dizer, o demônio, como é sabido pelos cristãos, é obscuro mas real, pessoal e não apenas uma presença simbólica." Numa demonstração de unidade com os pensamentos de Paulo VI, ele continua a reafirmação da Igreja sobre a existência do demônio: "Ele é uma realidade poderosa, o Príncipe deste mundo, como é chamado no Novo Testamento, que continuamente nos lembra a sua existência. É evidente, se olharmos realisticamente para a história, com os seus abismos de atrocidades, os quais não podem ser explicados somente pelo homem." E nos adverte confiante e esperançosamente: "Por si só o homem não tem poder para se opor a Satanás, mas o demônio não é um segundo Deus, e unidos a Jesus, nós podemos certamente vencê-lo." Prossegue o Cardeal, que, por um bom tempo no curso da Igreja de nossos dias, ocupou o cargo de Prefeito da Sagrada Congregação da Doutrina da Fé: "Se esta luz redentora do Cristianismo falhasse, o mundo e todo o seu conhecimento e tecnologia impludiria num incontrolável medo em face da estranha impenetrabilidade do ser. Há contudo, alguns sinais do recrudescimento desses poderes das trevas, e os cultos satânicos estão se expandindo mais e mais no mundo secularizado."
AINDA NA MESMA LINHA DE PENSAMENTOS
Enquanto Cardeal Karol Wojtyla, o Papa João Paulo II deixou-nos estas palavras referentes ao Maligno e à atuação satânica entre os homens, demonstrando claramente unidade com seu inesquecível predecessor Paulo VI: "Devemos, então, ir ainda mais além - por assim dizer - da realidade do homem: devemos remontar à realidade de Satanás. É óbvio que o antropocentrismo contemporâneo - mesmo o cristão e o teológico - dele mantenha distância e, de certo modo, se defenda."
Referindo-se diretamente ao Papa Paulo VI, continua o Cardeal Karol Wojtyla seus comentários extraídos de Sinal de Contradição, de sua autoria: "Todos sabemos como houve protesto quando o Santo Padre simplesmente lembrou as verdades elementares da doutrina eclesial justamente sobre este assunto. Recordou-o, também, a Sagrada Congregação da Doutrina da Fé no estudo La fede cristiana e la dottrina su Satana (A fé cristã e a doutrina sobre Satanás).
Registrem-se estas palavras do Papa da Paz, ainda na qualidade de Cardeal da Igreja: "Eis que, no terceiro capítulo de Gênesis, isto e, no início da Bíblia, fica bem claro que a história do homem e, com esta, a história do mundo a que o homem se acha unido por meio da obra da Criação divina, estarão sujeitas ao domínio da Palavra e da antipalavra, do Evangelho e do anti-evangelho." Continuando, Cardeal Wotjtyla enfatiza o que nos parece ser o principal intuito satânico: "O pai da mentira não se apresenta ao homem negando a existência de Deus: não lhe nega a existência e a onipotência que exprimem na criação; ele visa diretamente ao Deus da Aliança. Não lhe importa, em absoluto, a "divindade" do homem. É impelido somente pelo desejo de comunicar, de transmitir ao homem a sua revolta, isto e, aquela atitude com que ele - Satanás - se definiu a si mesmo e mediante a qual se colocou, conseqüentemente, fora da verdade; isto significa: fora da lei de dependência do Criador. E o sujeito deste ´non serviam´ - segundo a Tradição - tornou-se a maior inteligência criada: ´luzente filho da Aurora´ (cf. Is 14,12)."
AGORA, O CONCÍLIO VATICANO II
Em algumas linhas de seus documentos, o Concílio Vaticano II faz referências à ação do Maligno, ao Mistério da Iniqüidade. São considerações que nos ajudam a acentuar a importância de compreendermos com maior largueza a oração do Pai Nosso e, dentro dele, o sétimo pedido, na redação do Evangelho de Mateus, sem descuidarmos das outras petições. O sétimo pedido é um grande grito de socorro da humanidade, feito no silêncio da vida pessoal ou na dimensão comunitária do culto que se eleva a Deus.
Na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, a Igreja nos afirma que o homem constituído por Deus "em estado de justiça" é instigado pelo Maligno. No mesmo tópico (13), a Igreja nos lembra que, em virtude de seu envolvimento com o Mistério da Iniqüidade, "o homem está dividido em si mesmo" e nos alerta: "Por esta razão, toda a vida humana, individual e coletiva, apresenta-se como uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas".
Assegura-nos o Magistério da Igreja, nas linhas da Gaudium et Spes, que "o próprio Senhor veio libertar e confortar o homem renovando-o interiormente. Expulsou o "príncipe deste mundo" (Jo 12,31) que retinha o homem na escravidão do pecado". O sétimo pedido da oração do Pai Nosso expressa o grito do socorro do homem que, sentindo a debilidade de sua natureza e percebendo o perigo das tentações, vê em Deus a força de que necessita para livrar-se delas. Esse pedido é confissão de que Deus é libertador, como a própria Bíblia revela (Sl 17,47; 69,6; 143,2; Dn 6,27). O poder das trevas perpassa toda a vida humana, "a história universal da humanidade", como enfatiza o Concílio Vaticano II, no documento que, no momento, nos serve de fonte.
Peregrinos em direção à casa do Pai, estaremos numa luta árdua contra as ciladas e artimanhas do Maligno. "Iniciada desde a origem do mundo, vai durar até o último dia, segundo as palavras do Senhor. Inserido nesta batalha, o homem deve lutar sempre para aderir ao bem; não consegue alcançar a unidade interior senão com grandes labutas e o auxílio da graça de Deus" (GS 37).
O sétimo pedido adquire, dentro do Pai Nosso, uma dimensão profundamente escatológica. Desejamos a libertar-nos do Maligno porque temos um ideal: a visão beatífica. A comunhão absoluta com Deus será possível somente com a vitória sobre as tentações e a libertação do mundo das trevas, que, atingindo o homem, atingem as estruturas sociais criadas por ele. Nenhuma estrutura, especificamente social e até mesmo fora desta especificidade, criada pelo homem está isenta por completo da batalha contra o espírito maligno que paira sobre o mundo (Jo 1,29).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo sem termos dito tudo e mesmo sem termos lançado mão de todas as fontes que estão à nossa frente, vamos tecer, neste tópico, nossas considerações finais, na esperança de que o que aqui foi expresso nos sirva de motivação para nos colocarmos com interesse sempre renovado diante do sétimo pedido e de todas as outras petições do Pai Nosso.
O Mistério da Iniqüidade, com sua influência sobre as pessoas e grupos, faz com que o pecado não seja só pessoal mas também social e histórico, como nos lembra Leonardo Boff, em seu livro O Pai Nosso - a oração da libertação integral. São muito perspicazes e oportunas estas suas palavras: "Os pecados não morrem com as pessoas, mas se perpetuam por aquelas ações que sobrevivem às pessoas, como as instituições, os preconceitos, as normas morais e jurídicas, os hábitos culturais; muitíssimos deles perenizam vícios, discriminações raciais e morais, injustiças contra grupos e classes humanas; pelo simples fato de alguém nascer negro ou pobre já vem estigmatizado socialmente".
Dentro do contexto pintado acima, onde o pecado se faz presente no mundo, uma pessoa pode tornar-se vítima da situação de pecado ou fazer-se dele um agente reprodutor, na medida em que se apropria e aceita a situação. A oração do Pai Nosso é oportunidade que Deus nos concede para aprofundarmos nosso exame de consciência a respeito da reprodução de situações de pecado através de nossos atos, palavras, pensamentos e omissões.
Neste derradeiro parágrafo, queremos aproximar as palavras de Leonardo Boff, transcritas há pouco, com os "sinais do maligno" que o Papa Paulo VI coloca em sua alocução e ver nelas e nos apontamentos do Pontífice uma certa unidade de idéias. Alertando-nos que não ousava "aprofundar nem autenticar" seu diagnóstico sobre os "sinais do maligno", diz o Papa: "Podemos admitir a sua ação sinistra onde a negação de Deus se torna radical, sutil ou absurda, onde o engano se revela hipócrita, contra a evidência da verdade; onde o amor é anulado por um egoísmo frio e cruel; onde o nome de Cristo é empregado com ódio consciente e rebelde; onde o espírito do Evangelho é falsificado e desmentido; onde o desespero se manifesta como a última palavra, etc." É importantíssimo o "etc." com que o Papa encerra seu texto: o elenco de "sinais do maligno" continua na consciência de cada um de nós e na observação atenta de tantos e tantos episódios que marcam a vida da sociedade humana.
Diác. Juranir é presidente da CRD Leste I e membro da ENAP-Equipe Nacional de Assessoria Pedagógica da CND.
Data do artigo: maio de 2009