“SEMANA SÃO LOURENÇO” - O DIACONATO RESTAURADO NO BRASIL
07/08/2020
Diácono Alexandre Henrique Gruszynski - Arquidiocese de Porto Alegre (RS)
O Diácono Alexandre foi um dos quatro primeiros diáconos permanentes brasileiros pós-restauração. Foi ordenado, juntamente com Pedro Cardoso da Silva, de Quirinópolis (GO), Diocese de Jataí (GO); Benigno Lopes Rios e João Gonçalves Pereira Neto, da Arquidiocese de São Salvador (BA), pelo Papa Paulo VI, em missa do Congresso Eucarístico Internacional de Bogotá, Colômbia, no dia 22 de agosto de 1968. Somente o Diácono Alexandre está vivo.
O caríssimo diácono partilhou experiências da caminhada de vida e do diaconado para a “Semana São Lourenço”.
Alguns marcos da trajetória
Foi-me pedido que dissesse ou escrevesse alguma coisa sobre mim e sobre “os velhos tempos”, no Brasil, do Diaconato chamado “permanente”, que eu preferiria chamar de estável. É que sou o sobrevivente dentre os quatro primeiros que, na América Latina, foram ordenados Diáconos sem a pretensão de virem a ser, adiante, ordenados presbíteros e, quiçá, bispos.
Esquecemos, muito frequentemente, que a Igreja nasceu no Oriente, nasceu Oriental, e só mais adiante, com a ida de São Pedro para Roma, e, por outro lado, com a presença do Império Romano no Oriente, veio a firmar-se também no Ocidente. A Igreja é nativamente Oriental, e no Oriente, de modo geral, nunca1 deixou de ter, a par de bispos e presbíteros, também diáconos, ordenados para serem diáconos, na esteira do relato da instituição destes contido no Livro dos Atos dos Apóstolos. Cabe talvez lembrar que estes primeiros, embora se diga na Escritura que foram destinados ao serviço das mesas, logo adiante se veem, no mesmo Livro, situações em que eles ensinam e batizam.
Embora se encontre, na Igreja Ocidental, especialmente na Romana, exemplos de diáconos que permaneceram diáconos e assim serviram a seus bispos (veja-se o caso de São Lourenço), mais adiante, por razões que não cabe no momento aqui analisar, surgiu a regra de que não mais se ordenassem diáconos senão aqueles que pretendiam adiante ser ordenados ao sacerdócio, contrariando a tradição das Igrejas Orientais.
Em meados do século passado livros e artigos publicados na Europa movimentaram alguns setores da Igreja do Ocidente no sentido da eliminação daquela regra que só admitia a ordenação ao diaconato de candidatos ao sacerdócio. De Schamoni, em 1953, é o livro sugestivamente intitulado “Pais de Família Ordenados Diáconos”. (2) Josef Hornef retomou o assunto de vários artigos, que fora escrevendo sobre o tema, em obra intitulada Kommt der Diakon der fruehen Kirche wieder? publicado em tradução brasileira pela Editora Vozes em 19613. Winninger compareceu com um escrito na coletânea Présence Chrétienne,4 publicado também separadamente. (5) No Brasil, cabe mencionar o artigo do Frei Constantino Koser, OFM, publicado em 1959. (6)
Essas publicações, algumas ecoando escritos do século anterior, fizeram surgir muitas outras, notadamente artigos em Revistas, a respeito do tema, de modo que ele inevitavelmente surgiria no 2° Concílio do Vaticano, celebrado a partir de 1962, O Concílio, provocado basicamente por um grupo de Bispos da região entre o Sudoeste da Alemanha, da Bélgica, de Luxemburgo e do Norte da França, abordou o tema no documento sobre a Igreja, que em Latim começa com as palavras Lumen gentium, permitindo (n° 29) a restauração do diaconato como grau permanente da hierarquia na Igreja Latina, dependendo de decisão de cada Conferência de Bispos. Em algumas das Igrejas Orientais, possivelmente por influência da Igreja Latina, ocorreu uma certa decadência, a que se contrapôs o 2° Concílio do Vaticano através do documento Orientalium Ecclesiarum: Para que a antiga disciplina do Sacramento da Ordem vigore novamente nas Igrejas Orientais, deseja este sagrado Concílio que a instituição do diaconado permanente seja restaurada onde caiu em desuso, na perspectiva abordada nos escritos antes mencionados, acessível também a homens maduros já casados.
Cabe mencionar, para melhor visão dessa fase preparatória às primeiras ordenações, o que escreveram em 1966 os já mencionados Hornef e Winninger. (7). Muito interessante também o artigo que pode ser encontrado através da Internet em: https://www.dominicanajournal.org/wp-content/files/old-journal archive/vol52/no3/dominicanav52n3deacontheparish.pdf. E, em uma obra mais recente (mas não tanto...), também das Éditions du Cerf, intitulada Le Diaconat Permanent. (8) As Conferências de Bispos, que até então serviam para que os Bispos de um país ou de uma região apenas sintonizassem seus pontos de vista, passaram a ter, a partir do Concílio, poder deliberativo.
Os Bispos do Brasil aproveitavam a sua presença coletiva em Roma, por ocasião das sessões do Concílio, nos anos 1962-1965, para realizar as Assembleias Gerais da CNBB, e assim, ainda em 1964, diante do estabelecido no n° 29 da Lumen gentium, decidiram que o diaconato seria restaurado no Brasil, como grau permanente da hierarquia, e acessível somente a casados. Tal decisão, quanto se saiba, foi registrada em Ata, mas não chegou a ser objeto de um ato formal.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil buscando, a partir do Concílio, tornar efetiva sua ação, organizou-se em Secretariados Regionais, compreendendo o Episcopado de um ou mais Estados integrantes da República. Os Bispos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina constituíram, assim, o Regional Sul-3 da CNBB, que veio a ter sede em Porto Alegre. (9) E os Bispos do Regional Sul-3 resolveram, diante da decisão do Episcopado Brasileiro, organizar um Curso de Preparação para o Diaconato para os candidatos das correspondentes Dioceses.
Esse Curso foi planejado como Curso de Férias, em regime de dedicação total, em cinco etapas, sendo cada uma com 10 a 15 dias (nos meses de janeiro e de julho) e para ser realizado em Porto Alegre. Foi iniciado em janeiro de 1967. A primeira etapa foi na Vila Betânia, uma Casa de Retiros no Bairro Cascata, mas as seguintes não mais foram em Porto Alegre e sim em Viamão, no então Seminário. Os alunos eram 15, provenientes de várias Dioceses do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina; o Diretor do Curso foi o Rev. Luiz Colussi, da Diocese de Caxias do Sul (depois Bispo Diocesano de Lins, SP e de Caçador, SC). Soube-se, na época, que também em Goiânia e em Salvador da Bahia foram também, por essa época, instalados Cursos. Mais tarde os de Santa Catarina se desligaram do Sul-3 e constituíram o Sul-4.
Fui convidado pelo então Bispo-Auxiliar de Porto Alegre, Dom José Ivo Lorscheiter, em carta de 1/1/1967, para fazer o Curso. E o fiz, ainda que o tenha concluído depois da ordenação. Cabe mencionar que, havendo ao tempo de aluno da PUC e, logo adiante, de Professor na Faculdade de Direito, vinha eu mantendo, desde o início da década de 1950, bastante atividade no contexto eclesial, especialmente na área da Liturgia; desde 1961 integrava a Comissão de Liturgia, Música e Arte Sacra da Arquidiocese e atuava na Liturgia na Paróquia de Nossa Senhora do Rosário, em Porto Alegre, onde, aliás, continuei atuando, já como Diácono, até 1996, passando então a servir na Paróquia da Catedral, aliás minha Paróquia territorial desde 1961. Ademais, era professor de Direito Eclesiástico na Faculdade Direito da PUCRS desde 1956, e o fui até 2002. Tinha, assim, parece, um background adequado à ordenação.
Em 1968 deveria realizar-se em Bogotá, Colômbia, o 39° Congresso Eucarístico Internacional e na programação estava previsto um dia para o Sacramento da Ordem. Em Bogotá (Diocese Primaz das Américas) estava sediado o Conselho Episcopal Latino-Americano, organização que congregava as Conferências de Bispos da América Latina, e que, como organismo eclesial, participou da organização do Congresso. Foi o CELAM que, sabedor da existência do Curso em Porto Alegre, indagou se não haveria candidato a diácono que pudesse ser ordenado na celebração integrante do Congresso, que teria a presidência do Papa, então Paulo VI. Sondado, aceitei o convite.
Nesse meio tempo, entretanto, o Papa editara em 18 de junho de 1967, o Motu proprio Sacrum Diaconatus Ordinem, onde ficou esclarecido, entre outras coisas, que a restauração, em cada âmbito territorial, do diaconato como grau estável, deveria ser formalizada em documento a ser submetido à aprovação do Sumo Pontífice. A decisão do Episcopado Brasileiro, como dito acima, não chegara a constituir um documento formal, que pudesse ser submetido à aprovação da autoridade suprema da Igreja. Estava-se em julho de 1968, o Congresso em Bogotá era em agosto. Não se sabia de iniciativa da CNBB em providenciar tal documento, de modo que - a fim de que a situação pudesse ser regularizada - urgia fazê-lo.
Foi assim que numa gélida noite de julho, no Seminário de Viamão, tratei, juntamente com o Diretor do Curso (Pe. Colussi) de redigir o necessário texto, a fim de ser ainda submetido ao plenário da CNBB (então reunido, como sempre nos meses de julho, no Rio de Janeiro). Na manhã seguinte fui ao Escritório da VARIG, no Centro de Porto Alegre, e sem maior problema um funcionário se dispôs a fazer entrega do texto, no mesmo dia, no local da reunião dos Bispos, a Dom Vicente Scherer, então Arcebispo de Porto Alegre. O que foi feito. É bom lembrar que nem se imaginava Internet e a comunicação telefônica era extremamente precária.
O texto que preparamos foi aprovado pela Assembleia, com uma ressalva, feita de resto pelo próprio Dom Vicente, que riscou a palavra desde e escreveu mesmo. É que se tinha notícia de que os Bispos, quando tomaram ainda em Roma a decisão de restaurar o diaconato no Brasil teriam decidido que seria somente para casados. O texto que eu escrevera e fora revisado pelo Pe. Colussi procurou manter essa decisão, mas a perspectiva em julho de 1968 foi outra.
De retorno do Rio de Janeiro Dom Vicente passou-me o original do texto que eu lhe remetera (com a sua emenda) e também aprovou que eu viesse a ser ordenado, e ordenado por outro Bispo que não ele, eis que estava eu vinculado à Arquidiocese de Porto Alegre, e a ordenação cabia portanto a ele (que, aliás, fora o Pároco da minha infância e adolescência). Cabe lembrar, também, que outro aluno de nosso Curso de Porto Alegre, Vitorio Fontana, da Diocese de Santa Maria, também esteve por aceitar a ordenação em Bogotá, mas, por motivos de que não cheguei a tomar conhecimento, desistiu, sendo mais tarde ordenado em Santa Maria. Como era de lei à época, recebi, entre 15 e 10 dias antes da viagem a Bogotá, as chamadas ordens menores e o subdiaconato.
Os dias que precederam a viagem a Bogotá foram um tanto agitados, na época viajava-se menos pelo mundo... Por outro lado recebi, em meu pequeno apartamento onde morava então, entre outros, um grupo da RAI (Rádio e Televisão Italiana) que realizou uma entrevista comigo e o Rev. René Laurentin, sediado em Paris (e que fora Perito no Concílio, onde ficara amigo de Dom Vicente), sendo que este publicou depois uma reportagem no Le Figaro, de Paris, exatamente no dia da ordenação (22 de agosto). Na reportagem não deixou de mencionar o fato de eu ser casado com uma Assistente Social e Luterana...
Acompanharam-me na viagem a Bogotá minha mãe Emília e minha mulher, Cecy; nossos filhos, então dois, ficaram em São Paulo, com a família de uma irmã da Cecy. Em Bogotá ficamos hospedados em uma Paróquia (Sagrado Coração); seu Pároco era também o Cerimoniário Litúrgico do Congresso... Só lá em Bogotá fiquei sabendo que seríamos quatro, todos brasileiros, um de Jataí e dois de Salvador, os que iríamos ser ordenados ao diaconato para continuarmos diáconos, isso ao lado de outros 37 que eram candidatos ao sacerdócio. E cerca de 150 diáconos iriam, na mesma celebração, ser ordenados presbíteros.
Fomos, assim, os quatro, os primeiros diáconos estáveis da América Latina, sendo eu, agora, o único sobrevivente. Antes de nós, na Diocese de Colônia, tinham sido ordenados (abril de 1968) os primeiros da Europa. Em contato com essa Diocese, na época em que iriam transcorrer os 50 anos de nossa ordenação em Bogotá, fui informado de que nenhum daqueles de Colônia continuava em atividade. E, como escrevi acima, também os outros três brasileiros não mais vivem.
Minhas atividades ligadas ao Diaconato não se afastaram das linhas em quevinha tratando de servir à Igreja, conquanto, assim o creio, a partir daí fortalecido pelagraça do Sacramento. Na área do Direito Canônico participei de numerosos Congressos e Encontros, nacionais e internacionais, ligados à área. Sou co-fundador (1986) da Sociedade Brasileira de Canonistas (iniciativa do Pe. Jesus Hortal, S.I., depois Reitor da
PUCRJ) e dela fui Presidente por um biênio (1999-2001), sendo também membro da Société Internationale de Droit Canonique et de Legislations Religieuses, com sede em Paris. E, principalmente na fase inicial da renovação litúrgica consequente ao Concílio, tive significativa participação nas tarefas correspondentes, tanto no nível arquidiocesano como no do Regional Sul-3 da CNBB. Participei também com minha mulher, em Roma
e no Vaticano, das celebrações dedicadas aos Diáconos no Jubileu 2000.
Atualmente, estando aposentado como Procurador do Estado, cargo para que fui nomeado, após concurso, em 1964, e também (pelo INSS) como Professor (que fui, por 46 anos) da PUCRS, permaneço como Juiz do Tribunal Eclesiástico de Porto Alegre (desde 1987, tendo atuado como Advogado junto ao Tribunal desde 1974) e atuo na Liturgia na Catedral Metropolitana de Porto Alegre, inclusive na celebração diária da Missa vespertina e na das Vésperas cantadas em dois dias da semana (ora, porém, estou em reclusão domiciliar por motivo da Covid-19...).
Aos que se interessarem por outras informações que me digam respeito posso indicar a busca pelo meu Currículo Lattes (http://lattes.cnpq.br/5585984543756574) e o acesso a meu blog (www.liturgiaedireito.wordpress.com). Aos Colegas a quem cabe o canto do Exsultet na noite da Páscoa posso sugerir que vejam no YouTube a gravação que alguém (não sei quem...) fez e postou há alguns anos atrás: https://www.youtube.com/watch?v=Opdfa80Bw50
Quando da comemoração de 35 anos de minha ordenação preparei com a ajuda de minha filha Ana Cláudia, um grande painel com fotos e reproduções de publicações e documentos, que ficou exposto na Sacristia da Catedral e que depois transformei em uma apresentação do PowerPoint.
Citações:
2 SCHAMONI, Wilhelm. Familienvaeter als geweihte Diakone? Paderborn, 1953.
3 HORNEF, Josef. Voltará o Diácono da Igreja Primitiva? Petrópolis, RJ. Editora Vozes Limitada. 1961
4 WINNINGER, Paul. Vers un renouveau du diaconat, in: Présence Chrétienne, Paris, 1958.
5 WINNINGER, Paul. Vers un renouveau du diaconat, Paris, Desclée de Brouwer, 1958, 214 p.
6 KOSER, OFM, Constantino. Diáconos Profissionais na Igreja do Século XX? in: Revista Eclesiástica Brasileira, set. 1959. Petrópolis, RJ. Editora Vozes Limitada.
7 HORNEF, J. et WINNINGER, P. Chronique de la restauration du diaconat (1945-1965) in: WINNINGER, Paul et CONGAR, Yves (eds), Le Diacre dans l'Eglise, Paris. Cerf, 1966, pp. 205-222.
8 DUMONS, Bruno et MOULINET, Daniel. Le Diaconat Permanent – Relectires et Perspectives. Paris. Cerf. 2007.