Sustentação da dupla sacramentalidade
01/11/2008
Diácono Juranir Rossatti Machado
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Em seu parágrafo 205, o Documento de Aparecida traz à nossa lembrança: "Alguns discípulos e missionários do Senhor são chamados a servir à Igreja como diáconos permanentes, fortalecidos, em sua maioria, pela dupla sacramentalidade do matrimônio e da Ordem."
Dupla sacramentalidade: abertura à diversidade de tarefas
A partir destas concisas e densas palavras, podemos estabelecer um elenco de assuntos, entre os quais poderíamos enfatizar a vocação diaconal, expressa essencialmente no serviço à Igreja; o discipulado e a missionariedade do diácono permanente, que deverá considerar a família e a comunidade eclesial como campos fundamentais de atuação, conscientes de que não são os únicos campos de seu trabalho. Além das dimensões sociocultural, econômica, ecológica, ao lado da dimensão religiosa, existem as esferas profissional e sociopolítica, marcada não poucas vezes pela ausência do comportamento ético. Todas elas apresentam realidades que nos interpelam (Capítulo I das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil - Doc. da CNBB 87).
Tendo ainda como ponto de partida as mesmas palavras do parágrafo focalizado, poderíamos frisar também um conjunto de atividades relacionadas de maneira intrínseca ao Sacramento do Matrimônio: preparação de noivos para o casamento religioso, aconselhamento familiar, acompanhamento de casais de segunda união etc.. Poderíamos destacar igualmente, no âmbito do exercício do ministério diaconal, a administração do batismo, a participação como testemunha canônica do matrimônio, a presidência do culto e o acompanhamento da formação das novas comunidades eclesiais, como o próprio Documento de Aparecida acentua no trecho citado.
Objetivo: as linhas básicas da sustentação
O nosso objetivo é outro. Em nossas linhas, desejamos sublinhar a sustentação da dupla sacramentalidade, no sentido de apoio moral e espiritual, apontando a imitação de Cristo, a vivência do amor e a disponibilidade para o perdão como linhas básicas dentro do processo de fortalecimento da caminhada do diácono permanente casado. Evidentemente, no decorrer de nossos breves comentários referentes ao que julgamos linhas básicas, haverá alusão a atitudes merecedoras de cuidado.
O Documento de Aparecida, nas palavras que nos motivam, direciona nossa atenção para o fortalecimento da dupla sacramentalidade. A idéia de fortalecimento leva-nos a pensar em dificuldades, obstáculos, desafios, conquistas, frustrações, desânimo. Que é fortalecer? Não busquemos muitos sinônimos. Fiquemos com estes: tornar forte; robustecer; guarnecer com meios de defesa. No cumprimento das funções próprias do Sacramento do Matrimônio e do Sacramento da Ordem, o diácono permanente precisa tornar-se cada vez mais um homem forte e guarnecer seu ministério com legítimos e louváveis meios de defesa.
A difícil caminhada diaconal
Dentro do contexto familiar, o diácono permanente não está isento de problemas e crises e pode tornar-se presa fácil do desânimo e perder de vista o entusiasmo do primeiro amor. Recentemente, em nossas celebrações litúrgicas, Cristo repreendeu a Igreja de Éfeso pelo abandono do primeiro amor e suscitou nela a conversão e o retorno à prática inicial (Ap 2, 4-5). Na comunidade eclesial,o homem da dupla sacramentalidade não está livre de incompreensões e da pesada sensação de sentir-se um estranho no ninho. Nos dois contextos, família e comunidade eclesial, o diácono permanente casado deverá contar com desafios internos e externos, procurando detectar suas fontes ou causas. Com humilde e sábia perspicácia, deverá atentar para o fato de ele mesmo, em determinadas ocasiões, ser o principal causador das dificuldades encontradas no desempenho de seu ministério. É possível que, nos dois contextos, experimente momentos de profunda solidão e profundo abandono. Em todos os reveses, o ministro de Deus é chamado a ser homem forte, a robustecer-se, a animar-se na busca do primeiro amor, a guarnecer com legítimos e louváveis meios de defesa o ministério que a Igreja lhe confia, para o desempenho das "três funções de ensinar, santificar e governar, que correspondem aos membros da hierarquia" (Diretório para o Ministério Pastoral dos Bispos).
O ministério de Jesus Cristo: marcado por desafios
Jesus Cristo enfrentou desafios internos e externos. Por mais rápido que seja, lancemos um olhar sobre ele, contemplando suas atitudes diante dos obstáculos e extraindo delas as lições que nos são necessárias no enfrentamento de problemas. No contexto da família, não foi compreendido pelos seus parentes próximos (Mt 12, 46-50; Mc 3, 31-35; Lc 8, 19ss). Nem sempre Maria, sua mãe, e José, o pai adotivo, compreendiam seu comportamento e palavras (Lc 2, 50). Seus milagres chegaram a ser considerados obras realizadas por força do príncipe dos demônios (Lc 11, 15). No interior do grupo dos apóstolos, experimentou a traição de Judas e a negação de Pedro. Judas o trai, beijando-lhe a face (Mt 26, 47-49). Pedro o nega, mesmo tendo afirmado segui-lo até à morte (Mt 26, 30-35.69-75). Através de estratégias bem elaboradas, as autoridades religiosas empreenderam perseguições contra ele (Mt 26, 1-5). Não deixou de ser vítima de preconceitos, que manifestavam a desvalorização de seu ministério (Jo 7, 25-27). Foi abandonado por muitos de seus seguidores (Jô 6, 66). Inocente, viu-se envolvido na nefasta rede do disse-me-disse (Lc 7, 33-34). A pessoa e as palavras de Jesus eram objetos de múltiplas interpretações (Mt 16, 13-14). No lugar chamado Getsêmani, no mistério de sua humanidade, passa pela experiência do pavor e da angústia diante da visão do cálice de sofrimento: "Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice!" (Mt 26, 36-46; Mc 14, 32-42; Lc 22, 39-46). Na cruz, parece viver o silêncio de Deus: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste." (Mc 15, 34). No cenário do Getsêmani, não deixou de vir aos seus lábios a oração da confiança: "Todavia não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres" (Mt 26, 39) - "Meu Pai, se não é possível que este cálice passe sem que eu o beba, faça-se a tua vontade" (Mt 26, 42). Em meio à prostração e com a face por terra, Jesus não se afasta do projeto de Deus. No cenário dramático do lugar chamado Gólgota e em meio às dores provocadas pela ignorância humana, encontra fôlego para pronunciar a oração da entrega aos cuidados de Deus: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito" (Lc 23, 46).
Imitação de Cristo: sustentáculo da dupla sacramentalidade
É na imitação de Cristo que o diácono permanente casado, homem da dupla sacramentalidade, encontra a sustentação de seu ministério no contexto familiar, onde é chamado a construir a Igreja doméstica, no espaço da comunidade eclesial, dentro do qual é co-responsável pela construção da unidade, e em tantos outros lugares, nos quais precisa deixar a marca do testemunho do homem de fé.
É na imitação de Cristo que o diácono permanente casado encontra os meios de defesa de seu trabalho. Cristo é o modelo do ministro que deseja e precisa ser forte diante dos desafios à sua caminhada, sejam obstáculos internos ou externos, venham ou não de seu fórum íntimo.
Em seu itinerário de fortalecimento, a imitação de Cristo é a chave prioritária. Na verdade, a única chave. É a chave que nos possibilita o retorno ao primeiro amor e nos capacita a não perdermos de vista os ideais aos quais fomos chamados como ministros de Deus, isto é, servos de Deus. Imitar a Cristo significa estabelecer com ele e com o Pai íntima comunhão (DAp 155). Significa deixar seu Espírito impregnar as veias de nossa vida e marcar presença em nossas decisões. Imitá-lo é viver, no dia-a-dia, a experiência do encontro com ele, "uma experiência religiosa profunda e intensa" (DAp 226). Imitando-o, fazendo de seus passos nossos passos, penetramos no mistério da unicidade e trindade de nosso Deus. Imitando-o, descobrimos a impossibilidade de vivermos fora da dimensão comunitária, como a Igreja nos orienta através do Documento de Aparecida, nos itens do parágrafo 226. Cristo é o caminho da superação dos obstáculos e desafios: "No mundo haveis de ter aflições. Coragem! Eu venci o mundo." (Jo 16, 330)
Imitação de Cristo: encontro com o amor e o perdão
É necessário que se diga que, imitando a Cristo, seguindo seus passos, considerando-o caminho de superação de obstáculos e desafios, invocando-o como a única chave que nos possibilita o retorno ao primeiro amor, nos depararemos com a expressão maior de amor e com a expressão radical do perdão. Nele, o amor; nele, o perdão. É amando e perdoando que construímos o relacionamento sadio no âmbito da família com cada um de seus membros, no interior da comunidade eclesial com todos os irmãos e todas as irmãs que a compõem, na civilização humana com todos os cidadãos e todas as cidadãs.
Nunca será demais repetir que essas virtudes, geradoras de tantas outras, são indispensáveis ao processo de crescimento pessoal e coletivo. Sem elas, as potencialidades para o bem, que têm em Deus sua fonte, se atrofiam. Por amor e trazendo o perdão de Deus, o Filho, gerado pelo Pai e consubstancial ao Pai, despojou-se de sua "condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens" (Fl 2, 6-7). Tal aniquilamento é mistério que busca diálogo, promove a humildade, desencadeia a paz, constrói a solidariedade e deita raízes na misericórdia. Em certo sentido, podemos dizer que Deus, assumindo e dignificando a natureza humana, saiu de si mesmo e fez-se próximo de cada um de nós. O diácono que não se despoja de si mesmo e não consegue perceber que seu ministério é essencialmente serviço, torna-se incapaz de amar e de perdoar. No caso do diácono permanente casado, torna-se incapaz de construir a sustentação ou o fortalecimento da dupla sacramentalidade.
Seguidor de Cristo é aquele que decide amar, como Cristo amou, e, na dinâmica do amor, contraria seus próprios interesses e impulsos. É na vivência desta virtude que caminhamos para a santidade e ficamos parecidos com aquele que nos envia ao mundo, como discípulos e missionários, para pregarmos e falarmos em seu nome (DAp 134, 138). Enquanto o ódio nos aprisiona aos sentimentos negativos, o amor liberta e não nos deixa abandonar a vida de oração e de entrega de todas as dificuldades à providência divina.
O amor e o perdão molduram a imitação de Cristo e os três nos tornam homens fortes. É forte quem, em meio a adversidades, se mantém perseverante no amor e, diante das ofensas, continua lançando seu olhar de perdão (Lc 23, 34). Na imitação de Cristo, na vivência autêntica do amor e na cristificação da vida por meio da abertura ao perdão, temos os meios legítimos e louváveis para guarnecermos nosso ministério, que é sempre ministério de Cristo em nós. Com eles, no exercício diaconal, multiplicamos nossos talentos e sentimos derramadas sobre nós as graças da dupla sacramentalidade.
Diác. Juranir é presidente da CRD Leste I e membro da ENAP-Equipe Nacional de Assessoria Pedagógica da CND.
Data do artigo: novembro de 2008